O
morto não é exatamente um amigo. Mais um conhecido, mas daqueles
que você não pode deixar de ir ao velório. E lá está ele,
estendido dentro do caixão forrado de cetim, de terno azul-marinho e
gravata grená, esperando para ser enterrado.
Se
fosse um amigo você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o
morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido,
você comenta com o homem ao seu lado — que também não parece ser
íntimo do morto:
— Poderiam
ter escolhido outra gravata...
— É.
Essa está brava.
— Já
pensou ele chegando lá com essa gravata?
— “Lá”
onde?
— Não
sei. Onde a gente vai depois de morto. Onde vai a nossa alma.
— Eu
acho que a alma não vai de gravata.
— Será
que não? E de fatiota?
— Também
não.
— Bom.
Pelo menos esse vexame ele não vai passar.
— Você
é da família?
— Não.
Apenas um conhecido.
Você
examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais
importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar
nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques
de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!
Você
diz para o outro:
— A
coisa mais triste de um defunto são os bolsos.
O
outro estranha.
— Como
assim?
— Os
bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que
definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas,
caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...
— Pepsamar.
— Pepsamar,
cartão perfurado da Sena, recortes de artigos sobre a situação
econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância
apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma
possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial
e guardou. Entende?
— Sei...
— E
aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que
levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que
ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um
chaveiro.
— Você
acha?
— Claro.
As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que
pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!
Você
se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para
reprová-lo. “Mais respeito” dizem as caras viradas. Você faz um
gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas
continua, falando mais baixo:
— A
morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.
— Sem
piedade.
— Nenhuma.
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos Impossíveis
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