Este
mar amplo, largo de braços, nele sulcam as naus, o dragão que
formaste para zombar no mar.
(Salmos,
CIII, 25 e 26)
I
Gosto
de conversar com Ofélia na varanda após o jantar, cachimbo entre os
dentes e o oceano, enegrecido pela noite, estendendo-se à nossa
frente.
Conto-lhe
episódios da crônica de minha família ou do mar, esquecendo-me
frequentemente de que ela só se interessa por histórias de caçadas.
Quando me lembro disso, lamento a condição de Ofélia, descendente
de nobre estirpe de caçadores. Mas o que posso fazer, além de
lastimar? Não sinto a menor atração por esse esporte e entre os
meus antepassados não sei de algum que tenha levantado a arma para
exterminar animais que não fossem do gênero humano.
Se
noto que a conversa vai morrendo por culpa de Ofélia, que cerrou os
olhos para melhor sonhar com selvas e tiros, calo-me por instantes e
me ponho a ouvir vozes soturnas que vêm do mar. Ouço as sirenes que
cortam a noite como gemidos de homens que se perderam em águas
distantes.
Talvez
seja mera impressão minha. Os sons emitidos pelas naves, procurando
ou se afastando do porto, podem simbolizar, para outros, coisa bem
diferente. A Pedro, um velho marinheiro sardento, eles lembram apenas
as tabernas inglesas.
Não
sei de onde tirou tão estranha ligação, pois nunca toma o trabalho
de explicá-la. Contenta-se, quando instado a esclarecer o motivo, em
levar os olhos em direção ao oceano, como se quisesse enxergar algo
encoberto pelas imensas moles d’água.
O
botequineiro, que ostenta no corpo diversas tatuagens — todas
alusivas a amores passados —, diz que são “artes de rabo de
saia”. Discordo: marinheiro velho lembra-se de mulher somente para
ter saudades do mar.
II
Seja
qual for a razão, o meu amor pelas mulheres veio do mar. Não que eu
seja ou tenha sido marinheiro. Nem ao menos nasci numa cidade
litorânea. Sou de um vilarejo de Minas, agoniado nas fraldas da
Mantiqueira. Nas minhas veias, porém, corre o melhor sangue de uma
geração de valentes marujos.
Na
minha infância, enquanto meus companheiros subiam nas árvores, ou
caçavam passarinhos, eu me debruçava na banheira e me divertia
fazendo navegar pequenos barcos de papel.
Com
os anos, as minúsculas embarcações passaram a não me entreter
mais, nem me contentava em imaginar, de longe, a beleza dos veleiros
singrando verdes águas.
Esperei
que meu pai fizesse sua última viagem, que, aliás, por pouco não
foi marítima — morreu engasgado com uma espinha de peixe — para
ir morar no litoral.
III
A
desilusão me aguardava neste porto. Logo ao desembarcar, fraturei um
dos pés e fiquei inutilizado para os trabalhos marítimos.
Após
um período de denso desespero, consolei-me da frustração.
Distraía-me passeando pelas praias, sempre apoiado em muletas.
Conversava com pescadores ou simplesmente observava os navios, a me
sugerirem longos cruzeiros por oceanos infestados de piratas malaios,
semelhantes àqueles que, na adolescência, povoavam minha
imaginação. E pouco faltou para convencer-me de ter sido em outros
tempos experimentado marinheiro.
Despreocupado,
a minha vida escorregava mansamente, sem que o tédio da inatividade
me aborrecesse. Quando acabou o dinheiro que trouxera de Minas,
pensei em procurar um emprego. O que poderia fazer um aleijado com a
vocação de navegante, depois que lhe roubaram o mar?
IV
Do
meu bisavô também roubaram o mar.
José
Henrique Ruivães era capitão de navio negreiro. Estatura
gigantesca, ombros largos, desde menino navegava em veleiros que
buscavam na África escravos para as lavouras do Brasil.
Fisionomia
dura, barba negra, a boca sem os dentes da frente compunham a sua
figura bastante temida pelos marujos e escravos.
Para
demonstrar a força e a coragem do meu bisavô, contavam que, certa
vez, quando uma tempestade ameaçava afundar o seu barco e depois de
terem caído ao mar vários marinheiros, na tentativa de baixar as
velas, ele subiu sozinho, mastro acima, e as arriou. A façanha lhe
custou boa parte da dentadura, pois teve que se agarrar com as mãos
e dentes a panos e cordas, para evitar uma desastrosa queda.
Com
a abolição da escravatura, José Henrique retirou-se para uma
fazenda, onde passava os dias estirado numa rede.
Em
alguns momentos, no embalo da nostalgia, decidia-se a retornar ao
comando de uma nave qualquer. Agitado, compulsava mapas, ou pegava
uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular
ordens de comando.
Depois,
os altos cumes da Mantiqueira, escondendo-lhe o oceano, e a certeza
de que jamais comandaria navios negreiros, faziam com que ele
retornasse à rede.
Raramente
de bom humor, apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em punho,
comandava subordinados imaginários.
V
Já
o meu avô, que nascera em Minas, contentava-se em fazer barcos de
madeira e colecionar estampas de navios. Desculpava-se frequentemente
de não ter seguido a vocação ancestral, repetindo o velho José
Henrique:
— Mar?
Só em navio negreiro.
Talvez
desculpasse o seu horror por qualquer espécie de água: em seus
oitenta anos de vida conheceu somente a que o padre lhe ministrou na
cerimônia do batismo.
Ante
o exemplo paterno, meu pai jamais externou o desejo de ser navegador,
nem tampouco abusou dos banhos.
VI
Todavia
os insucessos navais de minha família não evitaram que eu viesse
para este porto e chegasse, um dia, a passar fome.
Não
sofri a fome por muito tempo. Logo conheci Alzira, uma viúva, cujo
marido enriquecera no contrabando de bebidas. E suicidara-se, por
razões que a minha falecida esposa jamais me revelou. Sim, a minha
falecida esposa, porque a desposei alguns dias após nos conhecermos.
Devo
esclarecer que não a pedi em casamento por causa de sua fortuna e
ainda menos pela sua beleza um tanto equívoca: tinha a cara de
tainha e o odor das lagostas. Foi pelo odor e não pelo rosto que a
escolhi para minha mulher.
O
nosso casamento durou pouco mais de um ano e terminou com a morte de
Alzira, intoxicada por umas sardinhas deterioradas que ela comera no
jantar.
VII
Ofélia,
que abomina meu silêncio, interrompeu agora os meus pensamentos com
um ladrido forte. Olho distraído para seu lado e vou reiniciar a
mesma história do mar, interrompida instantes atrás, porém me
detenho diante do seu olhar desaprovador. Sei que ela espera por uma
das minhas habituais fantasias e me revolto com a sua incompreensão.
— Não,
Ofélia. Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos
devaneios. Neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem
divertimentos, detestando caçadas e tendo herdado a vocação do meu
bisavô marinheiro...
Sinto
que não fui convincente e insisto com mais vigor:
— Ele
existiu, juro.
Vendo
que ela deixou de prestar atenção no que estou falando, desisto:
— Perdoe-me,
Ofélia, não sei por que insisto em proceder desta maneira. Mas
gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido!
Murilo Rubião, in Obra Completa
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