domingo, 31 de março de 2024

Ofélia, meu cachimbo e o mar

Este mar amplo, largo de braços, nele sulcam as naus, o dragão que formaste para zombar no mar.
(Salmos, CIII, 25 e 26)

I

Gosto de conversar com Ofélia na varanda após o jantar, cachimbo entre os dentes e o oceano, enegrecido pela noite, estendendo-se à nossa frente.
Conto-lhe episódios da crônica de minha família ou do mar, esquecendo-me frequentemente de que ela só se interessa por histórias de caçadas. Quando me lembro disso, lamento a condição de Ofélia, descendente de nobre estirpe de caçadores. Mas o que posso fazer, além de lastimar? Não sinto a menor atração por esse esporte e entre os meus antepassados não sei de algum que tenha levantado a arma para exterminar animais que não fossem do gênero humano.
Se noto que a conversa vai morrendo por culpa de Ofélia, que cerrou os olhos para melhor sonhar com selvas e tiros, calo-me por instantes e me ponho a ouvir vozes soturnas que vêm do mar. Ouço as sirenes que cortam a noite como gemidos de homens que se perderam em águas distantes.
Talvez seja mera impressão minha. Os sons emitidos pelas naves, procurando ou se afastando do porto, podem simbolizar, para outros, coisa bem diferente. A Pedro, um velho marinheiro sardento, eles lembram apenas as tabernas inglesas.
Não sei de onde tirou tão estranha ligação, pois nunca toma o trabalho de explicá-la. Contenta-se, quando instado a esclarecer o motivo, em levar os olhos em direção ao oceano, como se quisesse enxergar algo encoberto pelas imensas moles d’água.
O botequineiro, que ostenta no corpo diversas tatuagens — todas alusivas a amores passados —, diz que são “artes de rabo de saia”. Discordo: marinheiro velho lembra-se de mulher somente para ter saudades do mar.

II

Seja qual for a razão, o meu amor pelas mulheres veio do mar. Não que eu seja ou tenha sido marinheiro. Nem ao menos nasci numa cidade litorânea. Sou de um vilarejo de Minas, agoniado nas fraldas da Mantiqueira. Nas minhas veias, porém, corre o melhor sangue de uma geração de valentes marujos.
Na minha infância, enquanto meus companheiros subiam nas árvores, ou caçavam passarinhos, eu me debruçava na banheira e me divertia fazendo navegar pequenos barcos de papel.
Com os anos, as minúsculas embarcações passaram a não me entreter mais, nem me contentava em imaginar, de longe, a beleza dos veleiros singrando verdes águas.
Esperei que meu pai fizesse sua última viagem, que, aliás, por pouco não foi marítima — morreu engasgado com uma espinha de peixe — para ir morar no litoral.

III

A desilusão me aguardava neste porto. Logo ao desembarcar, fraturei um dos pés e fiquei inutilizado para os trabalhos marítimos.
Após um período de denso desespero, consolei-me da frustração. Distraía-me passeando pelas praias, sempre apoiado em muletas. Conversava com pescadores ou simplesmente observava os navios, a me sugerirem longos cruzeiros por oceanos infestados de piratas malaios, semelhantes àqueles que, na adolescência, povoavam minha imaginação. E pouco faltou para convencer-me de ter sido em outros tempos experimentado marinheiro.
Despreocupado, a minha vida escorregava mansamente, sem que o tédio da inatividade me aborrecesse. Quando acabou o dinheiro que trouxera de Minas, pensei em procurar um emprego. O que poderia fazer um aleijado com a vocação de navegante, depois que lhe roubaram o mar?

IV

Do meu bisavô também roubaram o mar.
José Henrique Ruivães era capitão de navio negreiro. Estatura gigantesca, ombros largos, desde menino navegava em veleiros que buscavam na África escravos para as lavouras do Brasil.
Fisionomia dura, barba negra, a boca sem os dentes da frente compunham a sua figura bastante temida pelos marujos e escravos.
Para demonstrar a força e a coragem do meu bisavô, contavam que, certa vez, quando uma tempestade ameaçava afundar o seu barco e depois de terem caído ao mar vários marinheiros, na tentativa de baixar as velas, ele subiu sozinho, mastro acima, e as arriou. A façanha lhe custou boa parte da dentadura, pois teve que se agarrar com as mãos e dentes a panos e cordas, para evitar uma desastrosa queda.
Com a abolição da escravatura, José Henrique retirou-se para uma fazenda, onde passava os dias estirado numa rede.
Em alguns momentos, no embalo da nostalgia, decidia-se a retornar ao comando de uma nave qualquer. Agitado, compulsava mapas, ou pegava uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular ordens de comando.
Depois, os altos cumes da Mantiqueira, escondendo-lhe o oceano, e a certeza de que jamais comandaria navios negreiros, faziam com que ele retornasse à rede.
Raramente de bom humor, apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em punho, comandava subordinados imaginários.

V

Já o meu avô, que nascera em Minas, contentava-se em fazer barcos de madeira e colecionar estampas de navios. Desculpava-se frequentemente de não ter seguido a vocação ancestral, repetindo o velho José Henrique:
Mar? Só em navio negreiro.
Talvez desculpasse o seu horror por qualquer espécie de água: em seus oitenta anos de vida conheceu somente a que o padre lhe ministrou na cerimônia do batismo.
Ante o exemplo paterno, meu pai jamais externou o desejo de ser navegador, nem tampouco abusou dos banhos.

VI

Todavia os insucessos navais de minha família não evitaram que eu viesse para este porto e chegasse, um dia, a passar fome.
Não sofri a fome por muito tempo. Logo conheci Alzira, uma viúva, cujo marido enriquecera no contrabando de bebidas. E suicidara-se, por razões que a minha falecida esposa jamais me revelou. Sim, a minha falecida esposa, porque a desposei alguns dias após nos conhecermos.
Devo esclarecer que não a pedi em casamento por causa de sua fortuna e ainda menos pela sua beleza um tanto equívoca: tinha a cara de tainha e o odor das lagostas. Foi pelo odor e não pelo rosto que a escolhi para minha mulher.
O nosso casamento durou pouco mais de um ano e terminou com a morte de Alzira, intoxicada por umas sardinhas deterioradas que ela comera no jantar.

VII

Ofélia, que abomina meu silêncio, interrompeu agora os meus pensamentos com um ladrido forte. Olho distraído para seu lado e vou reiniciar a mesma história do mar, interrompida instantes atrás, porém me detenho diante do seu olhar desaprovador. Sei que ela espera por uma das minhas habituais fantasias e me revolto com a sua incompreensão.
Não, Ofélia. Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos devaneios. Neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem divertimentos, detestando caçadas e tendo herdado a vocação do meu bisavô marinheiro...
Sinto que não fui convincente e insisto com mais vigor:
Ele existiu, juro.
Vendo que ela deixou de prestar atenção no que estou falando, desisto:
Perdoe-me, Ofélia, não sei por que insisto em proceder desta maneira. Mas gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido!

Murilo Rubião, in Obra Completa 

Nenhum comentário:

Postar um comentário