Então
foi até ali que a maré o levou.
Entre
as árvores.
Fazia
anos que Clay imaginava um momento como aquele — em que seria
forte, em que estaria seguro e pronto —, mas essas imagens foram
varridas de sua mente; ele era uma casca de tudo que era.
Tentando
recuperar a determinação, ficou parado ali naquela alameda de
eucaliptos robustos. Sentiu a pressão no peito: uma sensação de
ondas prestes a quebrar, embora, naquele momento, fossem ondas de ar.
Precisou lembrar a si mesmo de respirar.
À
frente dele, em algum ponto, ficava o lugar para onde as águas
fluíam.
À
frente dele, em algum ponto, ficava o lugar para onde os assassinos
fugiam.
***
Atrás
dele, havia sono e leitura, e os bairros mais ermos da cidade. Uma
corrente preguiçosa de metal, e quilômetros a perder de vista de
puras terras agrestes. Do alto da ignorância de Clay, parecia um
lugar de grande simplicidade. Havia um trilho de trem e havia terra,
e cordilheiras de espaço vazio.
Havia
uma cidade chamada Silver; e não, não é a cidade em que você está
pensando (a do cão, da Tec-tec e da cobra), mas uma no meio do
caminho.
Casas
pequenas. Gramados bem cuidados.
E,
enredado em toda essa área seca e rachada, um rio largo e torto
passava. Tinha um nome estranho, mas até que ele gostava.
Rio
Amahnu.
Quando
chegou naquela tarde, cogitou deixar o rio conduzi-lo ao pai, mas
acabou se deixando levar pela cidade. Comprou um mapa no posto de
gasolina.
***
Nas
ruas, seguiu as placas enferrujadas e o rastro de bebedeira das
latinhas de cerveja espalhadas. Encontrou uma estrada rumo ao
noroeste, deixou a cidade para trás.
Conforme
caminhava, encontrava um mundo cada vez mais vazio, como se tudo
fosse minando à sua volta, e também havia aquela outra sensação
de que, ao mesmo tempo, aquele mundo o confrontava. Sentia muito
claramente uma quietude à espreita, seguindo-o cada vez mais de
perto; sentia todos os passos dela. Quanto maior o vazio, mais perto
chegava do lar solitário de nosso pai.
***
Em
algum lugar da estrada, no meio de lugar nenhum, havia um desvio para
a direita. Uma caixa de correio informava o número, e Clay o
reconheceu do endereço guardado na caixa de madeira. Pegou a
estradinha de terra.
No
início, era um desvio abrupto e aberto na estrada, mas, após alguns
metros, depois de uma leve inclinação, Clay chegou à alameda. Bem
na altura dos olhos, os troncos mais lembravam pernas musculosas —
como se ele estivesse cercado de gigantes. O chão estava coberto de
cascas de árvore e galhos caídos, que se despedaçavam sob os pés
dele. Clay ficou onde estava; não iria embora.
Mais
adiante, ainda do mesmo lado, havia um carro estacionado:
Um
Holden, um caixote comprido e vermelho.
Do
outro lado do leito seco do rio, um portão iluminado. Depois do
portão ficava uma casa; um corcunda com uma boca e de olhos tristes.
Havia
muita vida entre os arbustos altos e ossudos. Entre as urzes, a
vegetação rasteira e o matagal parecido com o de Bernborough, o ar
estava infestado. Ouvia-se o som denso de insetos, elétrico e
erudito. Um idioma inteiro em uma única nota. Sem esforço.
Já
Clay não estava tão à vontade. Sofria uma hemorragia de medo e
culpa e incerteza. O fluxo o inundava, em três camadas.
Quanto
conseguiria protelar?
Quantas
vezes ainda abriria o pequeno baú de madeira, avaliando cada item
ali guardado?
Ou
mexeria na mala?
Quantos
livros pegaria para ler?
Quantas
cartas para Carey escreveria mentalmente?
Em
dado momento, ergueu a mão para uma longa faixa de luz vespertina do
sol.
— Vamos
lá.
Chegou
a dizer.
Ficou
estarrecido quando as palavras saíram de sua boca.
E
mais ainda na segunda vez:
— Vamos
lá, cara.
Vamos
lá, Clay.
Vá
dizer a ele por que você veio. Olhe bem para o rosto envelhecido e
para aqueles olhos fundos de assassino. Deixe que o mundo veja você
como realmente é:
Ambicioso.
Obstinado. Traidor.
Hoje
você não é um irmão, pensou ele.
Nem
irmão, nem filho.
Vai
lá, vai logo.
E
ele foi.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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