sexta-feira, 1 de março de 2024

O corredor


Então foi até ali que a maré o levou.
Entre as árvores.
Fazia anos que Clay imaginava um momento como aquele — em que seria forte, em que estaria seguro e pronto —, mas essas imagens foram varridas de sua mente; ele era uma casca de tudo que era.
Tentando recuperar a determinação, ficou parado ali naquela alameda de eucaliptos robustos. Sentiu a pressão no peito: uma sensação de ondas prestes a quebrar, embora, naquele momento, fossem ondas de ar. Precisou lembrar a si mesmo de respirar.
À frente dele, em algum ponto, ficava o lugar para onde as águas fluíam.
À frente dele, em algum ponto, ficava o lugar para onde os assassinos fugiam.

***

Atrás dele, havia sono e leitura, e os bairros mais ermos da cidade. Uma corrente preguiçosa de metal, e quilômetros a perder de vista de puras terras agrestes. Do alto da ignorância de Clay, parecia um lugar de grande simplicidade. Havia um trilho de trem e havia terra, e cordilheiras de espaço vazio.
Havia uma cidade chamada Silver; e não, não é a cidade em que você está pensando (a do cão, da Tec-tec e da cobra), mas uma no meio do caminho.
Casas pequenas. Gramados bem cuidados.
E, enredado em toda essa área seca e rachada, um rio largo e torto passava. Tinha um nome estranho, mas até que ele gostava.
Rio Amahnu.
Quando chegou naquela tarde, cogitou deixar o rio conduzi-lo ao pai, mas acabou se deixando levar pela cidade. Comprou um mapa no posto de gasolina.

***

Nas ruas, seguiu as placas enferrujadas e o rastro de bebedeira das latinhas de cerveja espalhadas. Encontrou uma estrada rumo ao noroeste, deixou a cidade para trás.
Conforme caminhava, encontrava um mundo cada vez mais vazio, como se tudo fosse minando à sua volta, e também havia aquela outra sensação de que, ao mesmo tempo, aquele mundo o confrontava. Sentia muito claramente uma quietude à espreita, seguindo-o cada vez mais de perto; sentia todos os passos dela. Quanto maior o vazio, mais perto chegava do lar solitário de nosso pai.

***

Em algum lugar da estrada, no meio de lugar nenhum, havia um desvio para a direita. Uma caixa de correio informava o número, e Clay o reconheceu do endereço guardado na caixa de madeira. Pegou a estradinha de terra.
No início, era um desvio abrupto e aberto na estrada, mas, após alguns metros, depois de uma leve inclinação, Clay chegou à alameda. Bem na altura dos olhos, os troncos mais lembravam pernas musculosas — como se ele estivesse cercado de gigantes. O chão estava coberto de cascas de árvore e galhos caídos, que se despedaçavam sob os pés dele. Clay ficou onde estava; não iria embora.
Mais adiante, ainda do mesmo lado, havia um carro estacionado:
Um Holden, um caixote comprido e vermelho.
Do outro lado do leito seco do rio, um portão iluminado. Depois do portão ficava uma casa; um corcunda com uma boca e de olhos tristes.
Havia muita vida entre os arbustos altos e ossudos. Entre as urzes, a vegetação rasteira e o matagal parecido com o de Bernborough, o ar estava infestado. Ouvia-se o som denso de insetos, elétrico e erudito. Um idioma inteiro em uma única nota. Sem esforço.
Já Clay não estava tão à vontade. Sofria uma hemorragia de medo e culpa e incerteza. O fluxo o inundava, em três camadas.
Quanto conseguiria protelar?
Quantas vezes ainda abriria o pequeno baú de madeira, avaliando cada item ali guardado?
Ou mexeria na mala?
Quantos livros pegaria para ler?
Quantas cartas para Carey escreveria mentalmente?
Em dado momento, ergueu a mão para uma longa faixa de luz vespertina do sol.
Vamos lá.
Chegou a dizer.
Ficou estarrecido quando as palavras saíram de sua boca.
E mais ainda na segunda vez:
Vamos lá, cara.
Vamos lá, Clay.
Vá dizer a ele por que você veio. Olhe bem para o rosto envelhecido e para aqueles olhos fundos de assassino. Deixe que o mundo veja você como realmente é:
Ambicioso. Obstinado. Traidor.
Hoje você não é um irmão, pensou ele.
Nem irmão, nem filho.
Vai lá, vai logo.
E ele foi.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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