Universidade
Nova. Os temas do costume: a história como ficção, a ficção como
história, e ainda o tempo como um imenso ecrã onde todos os
acontecimentos se vão inscrevendo, todas as imagens, todas as
palavras, o homem de Auschwitz ao lado do homem de Cro-Magnon, Inácio
de Loyola ao lado de Francisco de Assis, o negreiro ao lado do
escravo, a sombra ao lado da substância, e, em lhe chegando o tempo,
este que escreve ao lado do seu avô Jerónimo. Como também vai
sendo costume, foi muito louvada a minha sinceridade, mas, creio que
pela primeira vez, esta insistência e esta unanimidade fizeram-me
pensar se realmente existirá isso a que damos o nome de sinceridade,
se a sinceridade não será apenas a última das máscaras que
usamos, e, justamente por última ser, aquela que afinal mais
esconde.
Recital
de Paco Ibanez. Enquanto o ouvia, dizia comigo mesmo: “Este homem
parece-me bom, mas sê-lo-á, de facto?” Não é que a pergunta
resultasse de uma atitude de desconfiança sistemática de que o Paco
tivesse de ser, naquele momento, objecto inocente, mas por causa
desta preocupação em que ando, de querer saber o que se encontra
por trás dos actos que se veem e das palavras que se ouvem. O
público aplaudiu o cantor e aplaudiu-se a si próprio: todos
tínhamos sido, no nosso tempo, mais ou menos resistentes, restos de
um passado carregado de esperança, os mesmos que fomos e, contudo,
tão diferentes, cabeças brancas ou calvas no lugar das cabeleiras
ao vento de antanho, como disse Pilar, rugas onde a pele havia sido
lisa, dúvidas em vez de certezas. Porém, o que são estas coisas,
durante duas horas, por obra duma voz que os anos corroeram mas a que
não roubaram a expressão, por obra dumas poesias e dumas músicas,
os sonhos pareceram tornar-se outra vez possíveis, como realidades,
não como sonhos.
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote
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