– Não
tem um escritor americano que só queria levar para uma ilha deserta
um manual do perfeito construtor de barcos?
– Chesterton.
Não é americano, é inglês.
– Pois
é. Também eu tenho horror às ilhas. Estávamos num barco de pesca
em Cabo Frio. O senhor atlético, já meio grisalho, ao qual eu fora
apresentado pouco antes, continuou a falar:
– Não
dou para Robinson. Até sinto saudade do meu apartamentinho da Rua
49, bem no meio da confusão, morei lá oito anos. Estava só há um
mês em Nova York – trabalhando para uma firma, sou engenheiro –
quando me chamaram para topar uma pescaria no Maine. Fomos de trem,
num fim de semana, seis rapazes e seis moças. Convidei para ir
comigo uma garota que trabalhava no escritório, um amor de
alemãzinha, chamada Graziela. O nome é italiano mas era filha de
alemães. Fazia parte do grupo um rapaz, forte pra burro, que eu não
conhecia antes, um tal Aiken, que resolveu dar em cima da minha
pequena. Veja o meu azar.
Não
sei se por eu ser sul-americano, moreno assim, o sujeito de vez em
quando empurrava uma piadinha para o meu lado, a turma se esbaldava;
eu também ria, fazendo aquilo que eles chamam de fair-play. No
domingo, um dia maravilhoso, muito azul, estávamos pescando na
praia, quando resolvemos tomar duas lanchas de aluguel para ir até
umas ilhas que a gente avistava dali. Logo na primeira ilha, dei
sorte e peguei três peixes; mas os outros resolveram tentar a outra,
a um quilômetro, ficando de me apanhar depois. Graziela seguiu com a
turma. Ali pelas quatro horas, comecei a achar que eles estavam
demorando a voltar. Uma fome horrível. Mas você sabe como é esse
negócio de pescaria; se o peixe está dando, ninguém se lembra do
tempo. Não liguei muito. A ilha não tinha nada, era um pouco
parecida com a das Palmas. Aquilo mesmo, umas árvores magras e
pedra. O tempo foi passando, o sol esfriou, eu fui ficando
desconfiado. Quando anoiteceu, confesso que não gostei. Uma
ilhazinha de nada no mar, tudo escuro, num país estrangeiro; e umas
aves desagradáveis guinchando em cima de minha cabeça. O frio era
de rachar, e eu de calção e blusa. Ajuntei uns gravetos e acendi
uma fogueira, a duras penas; para aquecer-me e com a esperança de
que algum barco me visse. O fogo não durou nada, madeira úmida.
Começou a bater um vento gelado, meu velho, de dar calafrio. Quando
achei que eles não voltariam mesmo me deu um ódio de morte.
Precisei de berrar todos os palavrões que sabia para me acalmar um
pouco. Sabe o que tinha acontecido? Quando as duas lanchas foram
buscar o pessoal na outra ilha, Aiken disse para o motorista da
segunda, e para Graziela que dera ordem para o primeiro barco ir me
buscar.
Em
terra, convenceu a turma de que eu, furioso por ter esperado tanto
tempo, havia tomado o trem sozinho. Mas só soube disso depois. De
qualquer forma, aquilo só podia ser coisa do tal Aiken. Já se
imaginou na minha situação?! Ser passado assim pra trás! Me deu
tanta raiva que chorei. Consegui arrancar uns galhos de uns arbustos
e me cobri mais ou menos com eles, disposto a esperar a madrugada.
Mas não aguentei. Ainda por cima, o cigarro acabou. E aqueles
pássaros piando e esvoaçando na copa das árvores me punham
nervoso. Sem que medisse bem as consequências do que ia fazendo,
caminhei até uma rocha, resolvido a sair dali de qualquer jeito.
Queria ajustar contas com Aiken o mais depressa possível. Calculei
que da ilha à praia devia ser coisa de uns quatro quilômetros. Eu
via lá na costa uma luzinha acesa provavelmente do bar onde
trocáramos de roupa. Larguei na ilha o caniço e o molinete – uma
beleza de molinete –, caí n'água, e fui nadando na direção da
luz.
Nado
bem mas o mar estava bastante grosso e, pior de tudo, frio feito
gelo. Se me desse uma cãibra, adeus brasilzinho. Fui nadando. A luz
do bar me guiava. Às vezes, uma onda mal-intencionada me cobria; a
luz sumia. Depois a luz acabou sumindo mesmo. Cúmulo do azar: tinham
apagado a lâmpada. A cãibra queria chegar, eu boiava um pouco, não
tinha estrelas quase, só a Lua, Lua Nova. Mas, boiando, o meu
sentido de direção piorava. Outras vezes, achava que nadava para
dentro do mar, e não para a praia. Isso era pavoroso. Essa impressão
acabou tão forte, que decidi nadar na direção contrária. Uma
felicidade louca: exatamente quando ia virar, vi a luz de um carro
passando pela costa. Nadei como um cão. Não sei quanto tempo, umas
quatro horas. A costa era quase toda de rochedos, só em um pequeno
trecho era de seixos. Tive uma sorte tremenda, dei no lugar dos
seixos. Cheguei morto, tremendo e batendo queixo como uma caveira.
Bati no bar, não apareceu ninguém.
Esmurrei
a porta. Apareceu um rapazinho, o vigia, os proprietários já haviam
ido embora, ele não tinha a chave; que eu viesse buscar as minhas
roupas no dia seguinte.
Tiritando
de frio, andei até a estrada e comecei a pedir carona. Um caminhão
parou. Quando o chofer me viu, de calção, todo molhado, perguntou:
“Where did you come from?” De onde você veio? Dali,
respondi, apontando para a ilha. Ah, o sujeito ficou besta, deu-me um
aperto de mão. No caminho da cidadezinha, contei-lhe a história
toda. O cara ficou no maior entusiasmo, e me levou a um boteco, onde
chamou os amigos para dizer tudo que se passara comigo. Gente
simples, da melhor qualidade.
Me
pagaram uísque, sanduíches, até roupa me arranjaram, e me
emprestaram dinheiro para a passagem de volta. Mandei um cheque
depois em nome do dono do bar.
– E
o tal de Aiken?
– No
dia seguinte, Graziela me deu o telefone dele. Marcamos um encontro
num lugar ermo. O cabra era bom no boxe. Mas naquela época eu jogava
capoeira e, modéstia à parte, era também uma parada amarga. Foi
uma das melhores brigas da história dos Estados Unidos, isso eu
posso lhe garantir que foi. Não sei quem venceu; de minha parte,
fiquei satisfeito. Agora, se eu lhe disser uma coisa, você não vai
acreditar. Dessas que só acontecem nos Estados Unidos, Aiken se
tornou o meu melhor amigo. Ainda outro dia me escreveu participando o
nascimento de seu terceiro filho. Sou até padrinho do primeiro, o
Kenneth.
– E
a alemãzinha?
– Graziela?
É a mulher dele, mãe dos garotos.
Paulo Mendes Campos, in O cego de Ipanema
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