Quando
mataram
Neco
Andrade, não pude sentir bastante emoção porque tinha de
representar no teatrinho de amadores, e essa responsabilidade
comprimia tudo.
A
faca relumiou no campo — assim a vislumbrei, ao circular a notícia
— e Neco, retorcendo-se, tombou do cavalo, e o assassino se curva
para verificar a morte, e a tarde se enovela em vapores escuros, e
desce a umidade.
Caminhei
para o palco temeroso de não lembrar a frase longa e difícil que me
cabia proferir. O mau amador vive roído de dúvidas. Receava a
desaprovação do auditório, e sua prévia reflexão em mim já
frustrava o gesto, já tolhia a produção do mais autêntico.
O
cavalo
erra
alguns instantes na planície, dedicação sem alvo. O assassino
pondera o entardecer. E vela os despojos, enquanto mede as
possibilidades de fuga. Evêm aí os soldados, atraídos pelo vento,
pelo grito final do Andrade, pela secreta abdicação do criminoso,
que, na medula, se sabe perdido. Não podemos matar nosso patrão; de
ventre vazado, ele se vinga.
O
cadáver de Neco atravessa canhestramente o segundo ato, da esquerda
para a direita, volta, hesita, sai, instala-se nos bastidores embaixo
da escada. As deixas perdem-se, o diálogo atropela-se, Neco está se
esvaindo em silêncio e eu, seu primo, não sei socorrê-lo.
O
assassino
chega
preso, a multidão acode à cadeia, todos o contemplam a um metro,
nem isso, de distância. Joana roça-lhe a manga do paletó, sujo de
terra. Está sentado, mudo. Na casa de Neco, em frente à ponte,
luzes se armam em velório, e a escada é toda sonora de botas e
botinas rinchando.
Agora
o palco ficou vazio para caber a forma baia e ondulante que progride,
esmagando palavras. Da montaria de Neco pendem as caçambas de Neco.
Vai pisar em mim. Afastou-se, no trote deserto.
Seria
remorso
por
me consagrar ao espetáculo quando já o sabia morto? Não, que o
espetáculo é grande, e seduzia para além da ordem moral. E nossos
ramos de família nem se davam. Pena de perdê-lo, nutrida de alguma
velha lembrança particular, que floresce mesmo entre clãs
adversários? Pena comum, que toda morte violenta faz germinar? Nem
isso. Mas o ventre vazado, como se fosse eu que o vazasse, eu menino,
desarmado. Intestinos de Neco, emaranhados, insolentes, à vista de
estranhos. Vede o interior de um homem, a sede da cólera; aqui os
prazeres criaram raiz, e o que é obscuro em nosso olhar encontra
explicação.
E
tudo
se
desvenda: sou responsável pela morte de Neco e pelo crime de
Augusto, pelo cavalo que foge e pelo coro de viúvas pranteando. Não
posso representar mais; por todo o sempre e antes do nunca sou
responsável, responsável, responsável, responsável. Como as
pedras são responsáveis, e os anjos, principalmente os anjos, são
responsáveis.
Carlos Drummond de Andrade, in Fazendeiro do ar
Nenhum comentário:
Postar um comentário