A
cena da banheira era simples. Francine sentava-se dentro e Jack
Bledsoe no chão, do lado de fora, recostado na banheira, enquanto
Francine falava de várias coisas, principalmente sobre um assassino
que vivia no prédio e se achava em liberdade condicional. O homem,
que morava com uma velha, espancava-a continuamente. Ouviam-se o
assassino e sua dona discutindo e se xingando através das paredes.
Pinchot
me pedira para escrever diálogos de pessoas brigando do outro lado
das paredes e eu lhe dera várias páginas. Basicamente, essa fora a
parte mais gostosa da criação do argumento.
Muitas
vezes, nessas pensões e apartamentos baratos, não se tinha nada a
fazer quando se estava duro, morrendo de fome e reduzido à última
garrafa. Não se tinha nada a fazer senão escutar aquelas discussões
cabeludas. Elas faziam a gente compreender que não era o único
desiludido do mundo, não era o único à beira da loucura.
Não
podíamos ver a cena da banheira, porque não havia espaço
suficiente lá dentro, por isso Sarah e eu ficamos esperando na porta
da frente do apartamento, com a cozinha para um lado. Na verdade,
trinta anos atrás eu tinha morado por pouco tempo naquele mesmo
prédio da Rua Alvarado, com a dona sobre a qual escrevera o
argumento. Era de fato estranho e arrepiante. “Tudo que passa,
volta.” De uma maneira ou de outra. E trinta anos depois, o lugar
parecia mais ou menos o mesmo. Só as pessoas que eu conhecera tinham
todas morrido. A dona morrera três décadas atrás, e ali estava eu
sentado, tomando uma bebida naquele mesmo prédio cheio de câmeras e
som e técnicos. Bem, eu ia morrer também, muito breve. Sirva um por
mim.
Preparavam
comida na pequena cozinha, e a geladeira regurgitava de cervejas. Fiz
algumas incursões por lá. Sarah encontrou pessoas com quem
conversar. Tinha sorte. Toda vez que alguém falava comigo, eu sentia
vontade de saltar pela janela ou descer no elevador. As pessoas
simplesmente não tinham interesse algum. Talvez não devessem ter.
Mas os animais, pássaros, até mesmo os insetos tinham. Eu não
entendia.
Jon
Pinchot continuava adiantado um dia em relação ao cronograma de
filmagens, e eu estava satisfeito pra burro com isso. Tirava a
Firepower do nosso pé. Os grandolas não apareciam. Tinham seus
espias, é claro. Eu os via.
Alguns
membros da equipe tinham livros meus. Pediam autógrafos. Os livros
que traziam eram curiosos. Quer dizer, eu não os considerava os
melhores. (Meu melhor livro é sempre o último que escrevi.) Alguns
deles tinham um livro de minhas primeiras histórias pornográficas,
Batendo Punheta no Demônio. Alguns livros de poemas, Mozart na
Figueira e Você Deixaria Esse Homem Tomar Conta de sua Filhinha de
Quatro Anos? Também A Latrina do Bar é Minha Capela.
O
dia passava, em paz mas sem alegria.
Bela
cena de banheira, eu pensava. Francine deve estar bem lavada a essa
altura.
Jon
Pinchot entrou correndo no quarto. Parecia descomposto. Até o zíper
estava meio aberto. Despenteado. Os olhos pareciam ao mesmo tempo
ensandecidos e vazios.
– Meu
Deus! – disse. – Aqui está você!
– Como
vai indo?
Ele
se curvou sobre mim e me sussurrou no ouvido:
– É
terrível, é de enlouquecer! Francine está preocupada com a
possibilidade do bico do peito dela aparecer acima d’água! Fica
perguntando: “Meus peitos estão aparecendo?”
– Que
mal faz um peitinho?
Jon
se curvou mais ainda.
– Ela
não é mais tão jovem quanto gostaria... E Hyans odeia aquela
iluminação... Não suporta a iluminação e está bebendo cada vez
mais...
Hyans
era o câmera. Ganhara quase todos os prêmios do ramo, um dos
melhores câmeras vivos, mas, como a maioria das almas grandes,
gostava de seu traguinho de vez em quando.
Jon
prosseguiu, sussurrando freneticamente:
– E
Jack não diz uma fala certa. Temos de cortar o tempo todo. Tem
alguma coisa nas falas que incomoda ele, e ele fica com aquele
sorriso idiota no rosto quando as diz.
– Qual
é a fala?
– É:
“Ele tem de masturbar o agente da condicional quando o cara
aparece”.
– Tudo
bem, experimente: “Ele tem de tocar punheta no agente da
condicional quando o cara aparece.”
– Nossa,
obrigado! ESTA VAI SER A 19a TOMADA!
– Meu
Deus – eu disse.
– Me
deseje sorte...
– Sorte…
Jon
deixou o quarto. Sarah se aproximou.
– Que
é que há?
– A
19a tomada. Francine está com medo de mostrar os peitos, Jack não
consegue dizer sua fala e Hyans não gosta da iluminação.
– Francine
precisa de um trago – ela disse. – Vai fazer ela se soltar.
– Hyans
não precisa de um trago.
– Eu
sei. E Jack vai conseguir dizer a fala quando Francine se soltar.
– Talvez.
Nesse
momento Francine entrou no quarto. Parecia inteiramente perdida,
completamente por fora. Usava um roupão, uma toalha amarrada na
cabeça.
– Vou
dizer a ela – disse Sarah.
Aproximou-se
de Francine e falou-lhe baixinho. A outra escutou. Assentiu levemente
com a cabeça, saiu do quarto por uma porta à esquerda. Num
instante, Sarah emergiu da cozinha com uma xícara de café. Bem,
tinha scotch, vodca, uísque e gim naquela cozinha. Sarah preparara
alguma coisa. A porta abriu-se, fechou-se e a xícara de café
desapareceu.
Sarah
aproximou-se.
– Ela
vai ficar bem agora...
Passaram-se
dois ou três minutos, e a porta do quarto abriu-se de repente.
Francine saiu e dirigiu-se para o banheiro e a câmera. Quando
passava, seus olhos encontraram os de Sarah:
– Obrigada!
Bem,
não havia nada a fazer senão ficar sentado e bater mais papo.
Eu
não podia deixar de lançar uma olhada ao passado. Aquele era o
mesmo prédio do qual eu fora despejado por levar três mulheres para
meu quarto certa noite. Naquele tempo não tinha essa de Direitos do
Inquilino.
– Sr.
Chinaski – dissera a senhoria –, aqui moram pessoas religiosas,
pessoas trabalhadoras, pessoas com filhos. Eu nunca recebi uma queixa
dessas sobre outros inquilinos. E soube também que o senhor...
aquelas cantorias, aqueles xingamentos... quebra-quebra... palavrões
e risadas... Em toda a minha vida, eu jamais soube de nada parecido
com o que aconteceu em seu quarto ontem à noite!
– Tudo
bem, eu saio...
– Obrigada.
Eu
devia estar louco. Sem me barbear. A camiseta cheia de buracos de
cigarro. Meu único desejo era ter mais de uma garrafa na cômoda.
Não era feito para o mundo nem o mundo pra mim, e encontrara outros
como eu, e em sua maioria esses outros eram mulheres, mulheres com as
quais a maioria dos homens jamais iria querer ficar num mesmo quarto,
mas que eu adorava, elas me inspiravam, eu fazia teatro, xingava,
saltava pelo quarto de cueca dizendo-lhes que era grande, mas só eu
acreditava nisso. Elas apenas berravam: “Foda-se! Sirva mais um
pouco de álcool!”. Aquelas donas do inferno, aquelas donas no
inferno comigo.
Jon
Pinchot entrou rápido no quarto:
– Deu
tudo certo! Que dia! Agora, amanhã recomeçamos tudo!
– Agradeça
a Sarah! – eu disse. – Ela sabe preparar uma bebida mágica.
– Quê?
– Ela
soltou Francine com uma coisa numa xícara de café.
Jon
voltou-se para Sarah.
– Muito
obrigado...
– Disponha
– respondeu Sarah.
– Nossa
– disse Jon –, estou neste ramo há muito tempo e nunca fiz
dezenove tomadas!
– Eu
soube – eu disse – que Chaplin às vezes fazia cem tomadas até
conseguir o que queria.
– Isso
era Chaplin – disse Jon. – Cem tomadas, e nosso orçamento vai
embora.
E
foi isso aí por esse dia. A não ser por Sarah, que disse:
– Diabos,
vamos ao Musso’s.
O
que fizemos. E conseguimos uma mesa na Sala Velha e pedimos umas
bebidas enquanto olhávamos o menu.
– Lembram?
– perguntei. – Lembram dos velhos tempos quando a gente vinha
aqui ver as pessoas nas mesas e tentar localizar os tipos, os atores,
os diretores ou produtores, os tipos do pornô, os agentes, os
aspirantes? E a gente pensava: “Veja só eles, discutindo suas
negociatas de filmes, ou os contratos sobre seus últimos filmes”.
Que toupeiras, que desajustados. Melhor desviar o olhar quando
chegarem o peixe-espada e o linguado.
– A
gente achava eles uns merdas – disse Sarah – e agora nós é que
somos.
– Tudo
que passa, volta...
– Certo!
Acho que vou querer o linguado...
O
garçom pairava acima de nós, arrastando os pés, franzindo o cenho,
os pelos das sobrancelhas caindo sobre os olhos. Musso estava ali
desde 1919, e tudo era um pé no saco para ele: nós, e todos os
demais na casa. Eu concordava. Decidi pelo peixe-espada. Com batatas
fritas.
Charles Bukowski, in Hollywood
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