sábado, 6 de janeiro de 2024

De quando ele tem um sonho


Meu pai moribundo sonha que está morrendo. E esse sonho, ao mesmo tempo, é sobre mim.
É assim: quando se espalhou a notícia da doença de meu pai, pessoas enlutadas começaram a se juntar no quintal, primeiro só algumas, mas logo havia muitas, uma dúzia, depois duas, depois meia centena de pessoas, todas paradas no quintal, pisando nos canteiros, amassando a grama, espremendo-se sob o abrigo de automóvel quando chovia. Ombro a ombro no sonho de meu pai elas balançavam o corpo e gemiam, esperando notícias de sua recuperação. Além disso, toda vez que avistavam a figura dele passando em frente à janela do banheiro, gritavam e aplaudiam. Minha mãe e eu observávamos da janela da sala, sem saber o que fazer. Algumas daquelas pessoas pareciam pobres. Usavam roupas velhas, rasgadas, e seu rosto era coberto de pelos. Elas deixavam minha mãe inquieta; ela ficava mexendo nos botões de sua blusa enquanto as observava olhando tristemente para as janelas do segundo andar. Mas havia outras pessoas que pareciam ter deixado de lado tarefas importantes para vir chorar por meu pai. Tinham tirado suas gravatas, enfiando-as nos bolsos, seus sapatos elegantes estavam cheios de lama, e algumas tinham telefones celulares, que usavam para comunicar os acontecimentos àqueles que não podiam estar ali. Homens e mulheres, jovens e velhos, todos contemplavam a luz na janela do quarto de meu pai, esperando. Não aconteceu nada por um longo tempo. Quer dizer, era simplesmente a nossa vida, com as pessoas lá fora no quintal. Mas aquilo ficou demais, e após algumas semanas minha mãe me disse para pedir às pessoas que fossem embora.
E eu fui. Mas naquela altura elas estavam entrincheiradas. Um bufê rudimentar tinha sido organizado debaixo da magnólia, onde serviam pão, chili e brócolis cozidos. Ficavam incomodando minha mãe atrás de garfos e colheres, que eram devolvidos ainda sujos de chili, já frio e difícil de limpar. Uma pequena barraca tinha aparecido no gramado onde eu costumava jogar futebol com outras crianças da vizinhança, e correu o boato de que um bebê tinha nascido ali. Um dos homens de negócios com telefone celular estabelecera um pequeno centro de informações num toco de árvore, e as pessoas o procuravam quando queriam enviar mensagens para seus entes queridos ou saber se havia alguma notícia de meu pai.
Contudo, no meio daquela confusão, havia um homem mais velho, sentado numa espreguiçadeira, supervisionando tudo. Eu nunca o tinha visto antes, que eu soubesse (pelo menos era assim no sonho de meu pai), mas ele parecia um tanto familiar — um estranho, mas não um desconhecido para mim. Ocasionalmente, alguém se aproximava dele e dizia algo em seu ouvido. Ele escutava pensativamente, refletia por um momento sobre o que fora dito, e então assentia ou negava com a cabeça. Ele tinha uma barba branca espessa e óculos, e usava um chapéu de pescador, no qual estavam pregadas diversas iscas feitas à mão. E assim, como ele parecia ser uma espécie de líder, fui falar primeiro com ele.
Havia alguém cochichando com o homem quando me aproximei, e quando abri a boca para falar, ele levantou a mão para que me calasse. Depois que o mensageiro terminou de falar, o velho sacudiu negativamente a cabeça e ele se afastou rapidamente. Então o velho baixou a mão e olhou para mim.
Olá — eu disse. — Eu sou...
Eu sei quem você é — ele disse. Sua voz era suave e sonora, calorosa e distante ao mesmo tempo. — Você é o filho dele.
Isso mesmo.
Olhamos um para o outro e eu tentei recordar um nome, pois sem dúvida já tínhamos nos encontrado antes em algum lugar. Mas não consegui.
Você tem algum recado para nós?
Ele me observou com atenção, quase me agarrando com o olhar. Era um homem muito imponente, meu pai me disse.
Nenhum — falei. — Isto é, ele está na mesma, eu acho.
Na mesma — o homem disse, pesando cuidadosamente as palavras como que para tirar delas algum significado especial. — Então ele ainda está nadando?
Sim. Todo dia. Ele adora nadar.
Isso é bom — ele disse. E de repente ergueu a voz e gritou: — Ele ainda está nadando! — E um grito de júbilo ergueu-se da multidão. O rosto do homem estava radiante. Por alguns momentos ele inspirou profundamente e pareceu refletir. Então tornou a olhar para mim. — Mas você veio nos dizer uma outra coisa, não veio?
Sim. É só que, eu sei que a intenção de vocês é boa, e vocês são todos muito simpáticos. Mas sinto dizer que...
Nós temos que ir embora — falou calmamente. — Você quer que nós nos retiremos.
Sim. Sinto muito.
O velho pensou a respeito do que eu tinha dito. Pareceu assentir de leve, como se estivesse abalado com a notícia. Foi essa cena que meu pai viu em seu sonho, como que, ele disse, de muito longe, como se ele já estivesse morto.
Vai ser difícil partir — o velho disse. — Essas pessoas... elas realmente se importam. Vão ficar perdidas sem este lugar. Não por muito tempo, é claro. A vida tem um jeito de seguir em frente por si só. Mas a curto prazo vai ser duro. Sua mãe...
Isso a deixa nervosa — eu disse. — Todas essas pessoas no quintal, dia e noite. O senhor pode compreender isso.
É claro. E tem a bagunça também. Nós destruímos quase completamente o jardim.
Isso também.
Não se preocupe — ele disse, de um jeito que me fez acreditar. — Vamos deixá-lo do jeito que o encontramos.
Ela vai ficar contente.
Uma mulher veio correndo, agarrou minha camisa e esfregou o rosto em prantos nela, como que para determinar minha corporalidade.
William Bloom? — ela disse, e me lançou um olhar suplicante. Era uma mulher pequena, com pulsos finos. — Você é William Bloom, não é?
Sim — disse, recuando um ou dois passos, mas ela continuou agarrada à minha camisa. — Sou.
Dê isto a seu pai. — Ela enfiou em minha mão um travesseiro de seda em miniatura. — Ervas curativas num travesseirinho. Fui eu mesma que fiz. Talvez elas ajudem.
Obrigado — eu disse. — Vou fazer chegar até ele.
Ele salvou minha vida, sabe... Houve um grande incêndio. Ele arriscou a própria vida para salvar a minha. E hoje... hoje eu estou aqui.
Não por muito tempo — o velho disse. — Ele pediu para nós irmos embora.
Edward? — ela disse. — Edward Bloom pediu para irmos embora?
Não. A esposa dele e o filho.
Ela assentiu.
Como você disse que aconteceria. Que o filho viria até nós e pediria para irmos embora. Exatamente como você disse.
Minha mãe me pediu para fazer isso — falei, sentindo-me frustrado com aquela conversa misteriosa e com a insinuação maliciosa. — Isso não é algo que me agrade fazer.
E de repente a multidão soltou uma exclamação de espanto. Todo mundo estava olhando para as janelas do segundo andar, onde meu pai estava parado, acenando para as pessoas em seu sonho. Ele usava seu roupão amarelo, sorrindo para elas, de vez em quando reconhecendo alguém na multidão e apontando, erguendo as sobrancelhas, e murmurando uma ou duas palavras. “Você está bem? Que bom ver você!” Passando em seguida para outra pessoa. Todo mundo acenava, gritava, aplaudia, e então, depois do que pareceu ser uma visita de proporções muito breves, acenou mais uma vez, virou-se e desapareceu na escuridão do quarto.
Bem — o velho disse, sorrindo —, isso foi formidável, não foi? Ele parecia bem. Parecia muito bem.
Vocês estão cuidando bem dele — uma mulher disse.
Continuem assim!
Devo tudo a seu pai! — alguém gritou para mim de baixo da magnólia, e o que se seguiu foi uma cacofonia de vozes, balbuciando, contando alguma história sobre Edward Bloom e suas boas ações. Senti-me cercado por todas aquelas palavras. Depois me senti de fato cercado: uma fila tinha se formado à minha volta, as pessoas falando ao mesmo tempo, até o velho levantar a mão e as fazer calar, e então elas recuaram.
Está vendo — o velho disse. — Nós todos temos histórias, assim como você. As diversas formas com que ele nos tocou, nos ajudou, nos deu empregos, nos emprestou dinheiro, nos vendeu por atacado. Montes de histórias, grandes e pequenas. Todas elas se somam. No fim da vida, tudo se soma. É por isso que estamos aqui, William. Nós somos parte dele, de quem ele é, assim como ele é parte de nós. Você ainda não entende, não é?
Eu não entendia. Mas ao olhar para o homem, e ele me fitar de volta, no sonho de meu pai eu me lembrei de onde o tínhamos encontrado antes.
E o que foi que o meu pai fez pelo senhor? — perguntei, e o velho sorriu.
Ele me fez rir — ele disse.
E eu soube. No sonho, meu pai me disse, eu soube. E assim atravessei o jardim e voltei para o calor da minha casa.
Por que o elefante tem tromba? — Ouvi o velho berrar na sua voz forte e profunda, no momento em que eu estava fechando a porta. — Porque ele não tem porta-luvas — respondi junto com ele.
Seguiu-se uma grande gargalhada.
Assim termina o sonho de meu pai acerca de sua morte.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

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