segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A Contadora de Filmes



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Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.
Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.
A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.
E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.
Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.
Custou mais do que aprender a ler.

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Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.
Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.
Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.
Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.

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Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.
Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.
E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.
Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.
Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.

Hernán Rivera Letelier, in A Contadora de Filmes

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