— Fio,
fais um zóio de boi lá fora pra nóis.
O
menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro,
debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama,
rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no
chão mole — outra e mais outra. Três círculos entrelaçados,
cujos centros formavam um triângulo equilátero.
Isto
era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:
— Pronto,
vó.
— O
rio já encheu mais? — perguntou ela.
— Chi,
tá um mar d’água! Qué vê, espia, — e apontou com o dedo para
fora do rancho.
A
velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água.
Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o
braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro,
arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era
entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e desde
então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se
estorceram.
Começou
a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente,
irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.
O
Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva.
Dependurou numa forquilha a caroça, — que é a maneira mais
analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do
corpo e se agachou na beira da fornalha.
— Mãe,
o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá,
nóis se muda.
Onde
ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça
de algodão grosso.
A
velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a
colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão
brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de
mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a
mão, com que entrouxava a bocarra.
Agora
a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ronco confuso,
rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum
subterrâneo. A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o
calor da fornalha, como se pegasse fogo.
Já
tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do
Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de
terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que
dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de
buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a
passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.
No
tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio
de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação
geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém,
quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas.
Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que
ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o
resto do gado e as febres as pessoas. “— Este ano, se Deus ajudá,
nóis se muda.” Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo
aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido: “— Nóis
precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis”. Ele morreu de
maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que
falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a
mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no
mesmo lugar: a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho
sempre perrengado. A chuva caía meticulosamente, sem pressa de
cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando
dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava.
Ratos, sapos baratas, grilos, aranhas, — o diabo refugiava-se ali
dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a
perambeira do morrote.
Quelemente
saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia
horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa.
Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho.
Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e
mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um
relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e
embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o
ronco medonho da cheia.
No
canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se
sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.
— Ocê
bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. —
Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro
rancho e eu num quero drumi no chão não.
Ela
receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa
intimidade pachorrenta.
Quelemente
sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas
aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e
nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe
ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O
rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma
luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das
coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele,
com um brilho aziago no olhar. Lá fora o barulhão confuso,
subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.
— Adonde
será que tá o chulinho?
Foi
quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de
barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam
nágua com um barulhinho brincalhão — tchibungue — tibungue. De
repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram
banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:
— Nossa
Senhora d’Abadia do Muquém!
— Meu
Divino Padre Eterno!
O
menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da
estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de
madeira, cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha
umas contorsões diabólicas de espasmos epiléticos, entre as
espumas alvas.
— Cá,
nego, cá, nego — Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo
quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo
molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.
O
teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no
rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício.
Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, —
que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de
chuva, — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os
detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos
boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos
remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era
feita de paus de buritis amarrados por embiras.
Quelemente
nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma
ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando,
nessa jangada improvisada.
— E
o chulinho? — perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o
uivo do cachorro.
Quelemente
tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as
árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da
superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que
era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das
árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí
em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até
cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela.
Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima
do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se
salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era
mesmo, espatifar-se na cachoeira.
— É
o mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua
furavam o breu da noite.
Sim.
O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas,
sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável — deviam ser as
copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o
fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear
rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas
agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de árvore que
derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da
correnteza.
Quelemente
viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se:
procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo
rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a
treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso.
Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de
os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.
A
velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo
esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso
Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O
choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade
dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir,
sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era
o rio que reclamava uma vítima.
As
águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que
cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não
havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha
tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as
pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente
notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação
perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A
velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava,
abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim.
Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos,
enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua
garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.
Quelemente
segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara
aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer,
presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão
de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um
tufo d’água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto,
desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente,
desamparando-o no meio do rio. Ao cair, porém, sem querer, ele
sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser
a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza,
porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas,
certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto,
eram uns molambos sem governo, um estorvo.
Ah!
se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na
cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para
a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada
afundasse... Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no
chão, as pernas escorrendo ao longo do rio?
Quem
sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo
ronco escurecia mais ainda a treva?
— Mãe,
ô, mãe!
— Mãe,
a senhora tá aí?
E
as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente
a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado,
estuporado.
— Mãe,
ô, mãe! Eu num sabia que era raso. Espera aí, mãe!
O
barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo
por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo,
resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos
ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas
resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam
boiando por cima, como flores sobre túmulos.
— Mãe!
— lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água
lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos
arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não
respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo
da cachoeira.
Bernardo Élis, in Ermos e Gerais
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