sábado, 2 de dezembro de 2023

A levantadora de bundas e o minotauro


Pelo amor de Deus! Acorda, caralho!
Enquanto Penny entra em cena, Clay começa a se retirar, bem lentamente.
No primeiro dia depois do meu ultimato na varanda, ele seguiu seu caminho até o saco de pão e o café frio. Mais tarde, secou o rosto no banheiro e ficou me ouvindo sair para trabalhar. Já com o uniforme velho e encardido, parei perto da cama de Rory. Ele ainda estava meio adormecido, meio morto, resultado da noite anterior.
Ei, Rory! — Dei uma chacoalhada nele. — Rory!
Ele tentou se mexer, mas não conseguiu.
Porra, Matthew, que foi?
Porra digo eu! Não se faz de desentendido! Tem uma caixa de correio lá fora, de novo.
Ah, é isso? Mas quem disse que fui eu?
Vou fingir que não ouvi isso. Só coloca essa merda de volta no lugar!
Não sei nem onde arrumei esse troço.
É só ver a porra do número!
O problema é que não sei a rua.
Agora, o momento pelo qual Clay ansiava:
Je-sus Cristo! — Mesmo em outro cômodo, ele percebeu o tamanho da minha fúria, mas me ative à praticidade. — Tô pouco me lixando pro que você vai fazer, mas quando eu chegar não quero nem sinal disso aqui. Entendeu?
Logo depois, Clay entrou no quarto, notando que a conversa toda se dera com Heitor atracado ao pescoço de Rory. O gato ficou ali deitado, soltando pelo e ronronando. Os ronrons alcançavam o tom agudo do pombo.
Ao reparar em uma nova presença na porta, Rory perguntou, com a voz abafada:
Clay? É você? Faz o favor de tirar essa porra desse gato de cima de mim. — Então esperou o gato soltar as duas últimas garras teimosas e: — Ahhhhhh!
Ele soltou um longo suspiro de alívio, envolto na tempestade de pelo de gato. O despertador do celular de Rory já estava apitando fazia um bom tempo — estava deitado em cima do aparelho, imobilizado por Heitor.
Você ouviu o Matthew? Aquele resmungão do caralho! — Apesar da dor de cabeça lancinante, Rory esboçou um sorriso cansado. — Pode jogar a caixa nas Cercanias pra mim?
Clay assentiu.
Valeu, moleque. E me ajuda aqui, tô atrasado pro trabalho. — Mas uma coisa de cada vez. Primeiro ele deu um tapão na cabeça de Tommy. — E você... Já falei pra deixar esse gato... — ele reuniu forças — LONGE DA MINHA CAMA, PORRA!

***

Quinta-feira, Clay foi para a escola.
Na sexta, abandonou o lugar para sempre.
Naquela segunda manhã, ele se dirigiu à sala dos professores, que tinha cartazes fixados à parede e um quadro cheio de anotações. Eram cartazes bem engraçados. Jane Austen em um vestido de babados, segurando bem alto uma barra de pesos. A legenda dizia LITERATURA É PARA OS FORTES. O outro era só texto: MINERVA MCGONAGALL É DEUS.
Ela estava com vinte e três anos, a professora.
Seu nome era Cláudia Kirkby.
Clay gostava dela porque, quando conversavam, ela conseguia manter com ele uma relação informal mesmo sendo sua professora.
Quando o sinal tocava, ela olhava para ele.
Vai, moleque, circulando... Levanta essa bunda daí e vai pra aula.
Cláudia Kirkby entendia de poesia.
Era morena, de cabelo castanho-escuro e olhos castanho-claros e uma única sarda no meio da bochecha. Estava sempre com um sorriso paciente, e panturrilhas, belas panturrilhas, e salto alto, era bem alta, e sempre bem-vestida. Por alguma razão, simpatizou com a gente de cara; até com o Rory, que era um pesadelo.
Quando Clay entrou na sala antes do horário naquela sexta-feira, ela estava debruçada na mesa.
Bom dia, sr. Clay.
Estava corrigindo redações.
Tô indo embora.
Ela parou abruptamente e olhou para ele.
Nada de levanta-a-bunda naquele dia.
Ela se sentou, ficou séria e disse:
Hummm.

***

Às três, eu estava na escola, sentado na sala da sra. Holland, e não era minha primeira vez ali — foi um longo caminho até a expulsão de Rory (em águas por vir). A diretora da escola era uma dessas mulheres estilosas de cabelo curto, com mechas grisalhas e brancas, e olheiras que mais pareciam pintadas com giz de cera.
Como vai o Rory?
Arrumou um emprego, mas não mudou nada.
Hum, mande lembranças nossas.
Pode deixar. Ele vai ficar contente.
Até parece, aquele imbecil.
Cláudia Kirkby também estava presente, em seu salto decoroso, saia preta, camisa creme. Sorriu para mim como sempre sorria, e eu sabia que deveria falar — bom te ver —, mas não conseguia. Afinal, era uma tragédia. Clay estava abandonando a escola.
Sra. Holland:
Então... Hum, como eu disse ao telefone, hum... — Nunca vi alguém tão cheio de hums. Conheci pedreiros que faziam menos hums que ela. — Hum, estamos com o jovem Clay aqui, ahh, prestes a nos deixar.
Minha nossa, ela disparou um ahh; a coisa estava feia.
Olhei de relance para Clay, sentado ao meu lado.
Ele ergueu o rosto, mas não disse nada.
É um bom aluno — disse ela.
Eu sei — falei.
Assim como você era.
Não reagi.
Ela prosseguiu.
Mas está com dezesseis anos. Por lei, hum, não podemos fazer nada.
Ele quer ir morar com nosso pai — contei.
Pensei em acrescentar por um tempo, mas as palavras não saíram.
Entendi. Bom, hum, podemos ver qual é a escola mais próxima da casa do seu pai…
De repente bateu: fui acometido por uma tristeza paralisante na sala da diretora, à luz meio apagada, meio fluorescente. Não haveria outra escola, não haveria qualquer outra coisa. Era o fim da linha, e todos nós sabíamos.
Eu me afastei, passei por Cláudia Kirkby, e ela também parecia triste, de um jeito tão respeitoso, tão vorazmente doce.
Depois, quando Clay e eu entramos no carro, ela gritou nosso nome e correu até nós. Eram pés silenciosos, rápidos. Tinha deixado os sapatos na porta da sala.
Aqui — disse ela, com uma pequena pilha de livros. — Pode ir, mas tem que ler esses livros.
Clay concordou e se dirigiu a ela com gratidão.
Obrigado, srta. Kirkby.
Apertamos as mãos e nos despedimos.
Boa sorte, Clay.
E que mãos bonitas, pálidas, porém mornas, e o brilho de um sorriso triste em seu olhar.
No carro, Clay voltou-se para a janela e falou como quem não quer nada, embora decidido.
Sabe, ela gosta de você.
Disse isso enquanto nos afastávamos da escola.
É curioso pensar que, um dia, eu acabaria me casando com aquela mulher.

***

Mais tarde, Clay foi à biblioteca.
Chegou às quatro e meia, e às cinco estava sentado entre duas grandes pilhas de livros. Tudo que conseguiu encontrar sobre pontes. Milhares de páginas, centenas de técnicas. Cada tipo, cada medida. Os jargões todos. Clay folheou os volumes e não entendeu nada. Mas ele gostava de ver as pontes: os arcos, as suspensões, os cantilévers.
Rapaz... — Ele ergueu o rosto. — Quer pegar algum desses emprestado? São nove horas. Vai fechar.
Em casa, ele cambaleou pela porta, sem acender as luzes. A bolsa azul abarrotada de livros. Disse ao bibliotecário que passaria muito tempo fora e conseguiu estender o prazo de devolução.
O acaso não deixa barato, e, quando ele entrou, fui o primeiro que encontrou, rondando o corredor tal qual o Minotauro.
Paramos, ambos olhamos para o chão.
Uma bolsa pesada daquele jeito falava por si.
À penumbra, meu corpo parecia indiferente, mas meus olhos estavam acesos. Eu estava cansado naquela noite, com muito mais que vinte anos; era um ancião, lânguido e grisalho.
Pode passar.
No caminho, ele viu que eu segurava uma chave inglesa; estava consertando a torneira do banheiro. Eu não era nenhum Minotauro, era a merda de um faz-tudo. Ficamos os dois encarando a bolsa de livros, e o corredor parecia se fechar, prestes a nos esmagar.

***

Então sábado, e a espera por Carey.
De manhã, Clay deu umas voltas de carro com Henry, para acompanhá-lo com os livros e discos nas vendas de garagem; ele assistia à pechincha. Em uma calçada sinuosa havia uma coletânea de contos chamada Pináculo infinito; um belo exemplar de bolso, com um atleta saltando obstáculos em relevo na capa. Ele pagou um dólar e presenteou Henry, que pegou o livro, abriu e sorriu.
Garoto — disse ele —, você é um lorde.
A partir dali, caiu a noite.
Mas eles precisavam de conquistas.
À tarde, Clay foi até o Bernborough dar voltas na pista. Leu os livros na arquibancada e começou a entender. Termos como compressão, treliça e pegão aos poucos ganhavam sentido.
A certa altura, ele correu pelo canal de escadarias entre os bancos farpados. Ele se lembrou da garota de Starkey ali e sorriu por causa dos lábios dela. Uma brisa sacolejava o campo interno, enquanto ele disparava na reta final.
Faltava pouco.
Ele logo estaria nas cercanias.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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