— Pelo
amor de Deus! Acorda, caralho!
Enquanto
Penny entra em cena, Clay começa a se retirar, bem lentamente.
No
primeiro dia depois do meu ultimato na varanda, ele seguiu seu
caminho até o saco de pão e o café frio. Mais tarde, secou o rosto
no banheiro e ficou me ouvindo sair para trabalhar. Já com o
uniforme velho e encardido, parei perto da cama de Rory. Ele ainda
estava meio adormecido, meio morto, resultado da noite anterior.
— Ei,
Rory! — Dei uma chacoalhada nele. — Rory!
Ele
tentou se mexer, mas não conseguiu.
— Porra,
Matthew, que foi?
— Porra
digo eu! Não se faz de desentendido! Tem uma caixa de correio
lá fora, de novo.
— Ah,
é isso? Mas quem disse que fui eu?
— Vou
fingir que não ouvi isso. Só coloca essa merda de volta no lugar!
— Não
sei nem onde arrumei esse troço.
— É
só ver a porra do número!
— O
problema é que não sei a rua.
Agora,
o momento pelo qual Clay ansiava:
— Je-sus
Cristo! — Mesmo em outro cômodo, ele percebeu o tamanho da
minha fúria, mas me ative à praticidade. — Tô pouco me lixando
pro que você vai fazer, mas quando eu chegar não quero nem sinal
disso aqui. Entendeu?
Logo
depois, Clay entrou no quarto, notando que a conversa toda se dera
com Heitor atracado ao pescoço de Rory. O gato ficou ali deitado,
soltando pelo e ronronando. Os ronrons alcançavam o tom agudo do
pombo.
Ao
reparar em uma nova presença na porta, Rory perguntou, com a voz
abafada:
— Clay?
É você? Faz o favor de tirar essa porra desse gato de cima de mim.
— Então esperou o gato soltar as duas últimas garras teimosas e:
— Ahhhhhh!
Ele
soltou um longo suspiro de alívio, envolto na tempestade de pelo de
gato. O despertador do celular de Rory já estava apitando fazia um
bom tempo — estava deitado em cima do aparelho, imobilizado por
Heitor.
— Você
ouviu o Matthew? Aquele resmungão do caralho! — Apesar da dor de
cabeça lancinante, Rory esboçou um sorriso cansado. — Pode jogar
a caixa nas Cercanias pra mim?
Clay
assentiu.
— Valeu,
moleque. E me ajuda aqui, tô atrasado pro trabalho. — Mas uma
coisa de cada vez. Primeiro ele deu um tapão na cabeça de Tommy. —
E você... Já falei pra deixar esse gato... — ele reuniu forças —
LONGE DA MINHA CAMA, PORRA!
***
Quinta-feira,
Clay foi para a escola.
Na
sexta, abandonou o lugar para sempre.
Naquela
segunda manhã, ele se dirigiu à sala dos professores, que tinha
cartazes fixados à parede e um quadro cheio de anotações. Eram
cartazes bem engraçados. Jane Austen em um vestido de babados,
segurando bem alto uma barra de pesos. A legenda dizia LITERATURA É
PARA OS FORTES. O outro era só texto: MINERVA MCGONAGALL É DEUS.
Ela
estava com vinte e três anos, a professora.
Seu
nome era Cláudia Kirkby.
Clay
gostava dela porque, quando conversavam, ela conseguia manter com ele
uma relação informal mesmo sendo sua professora.
Quando
o sinal tocava, ela olhava para ele.
— Vai,
moleque, circulando... Levanta essa bunda daí e vai pra aula.
Cláudia
Kirkby entendia de poesia.
Era
morena, de cabelo castanho-escuro e olhos castanho-claros e uma única
sarda no meio da bochecha. Estava sempre com um sorriso paciente, e
panturrilhas, belas panturrilhas, e salto alto, era bem alta, e
sempre bem-vestida. Por alguma razão, simpatizou com a gente de
cara; até com o Rory, que era um pesadelo.
Quando
Clay entrou na sala antes do horário naquela sexta-feira, ela estava
debruçada na mesa.
— Bom
dia, sr. Clay.
Estava
corrigindo redações.
— Tô
indo embora.
Ela
parou abruptamente e olhou para ele.
Nada
de levanta-a-bunda naquele dia.
Ela
se sentou, ficou séria e disse:
— Hummm.
***
Às
três, eu estava na escola, sentado na sala da sra. Holland, e não
era minha primeira vez ali — foi um longo caminho até a expulsão
de Rory (em águas por vir). A diretora da escola era uma dessas
mulheres estilosas de cabelo curto, com mechas grisalhas e brancas, e
olheiras que mais pareciam pintadas com giz de cera.
— Como
vai o Rory?
— Arrumou
um emprego, mas não mudou nada.
— Hum,
mande lembranças nossas.
— Pode
deixar. Ele vai ficar contente.
Até
parece, aquele imbecil.
Cláudia
Kirkby também estava presente, em seu salto decoroso, saia preta,
camisa creme. Sorriu para mim como sempre sorria, e eu sabia que
deveria falar — bom te ver —, mas não conseguia. Afinal, era uma
tragédia. Clay estava abandonando a escola.
Sra.
Holland:
— Então...
Hum, como eu disse ao telefone, hum... — Nunca vi alguém tão
cheio de hums. Conheci pedreiros que faziam menos hums que ela. —
Hum, estamos com o jovem Clay aqui, ahh, prestes a nos deixar.
Minha
nossa, ela disparou um ahh; a coisa estava feia.
Olhei
de relance para Clay, sentado ao meu lado.
Ele
ergueu o rosto, mas não disse nada.
— É
um bom aluno — disse ela.
— Eu
sei — falei.
— Assim
como você era.
Não
reagi.
Ela
prosseguiu.
— Mas
está com dezesseis anos. Por lei, hum, não podemos fazer nada.
— Ele
quer ir morar com nosso pai — contei.
Pensei
em acrescentar por um tempo, mas as palavras não saíram.
— Entendi.
Bom, hum, podemos ver qual é a escola mais próxima da casa do seu
pai…
De
repente bateu: fui acometido por uma tristeza paralisante na sala da
diretora, à luz meio apagada, meio fluorescente. Não haveria outra
escola, não haveria qualquer outra coisa. Era o fim da linha, e
todos nós sabíamos.
Eu
me afastei, passei por Cláudia Kirkby, e ela também parecia triste,
de um jeito tão respeitoso, tão vorazmente doce.
Depois,
quando Clay e eu entramos no carro, ela gritou nosso nome e correu
até nós. Eram pés silenciosos, rápidos. Tinha deixado os sapatos
na porta da sala.
— Aqui
— disse ela, com uma pequena pilha de livros. — Pode ir, mas tem
que ler esses livros.
Clay
concordou e se dirigiu a ela com gratidão.
— Obrigado,
srta. Kirkby.
Apertamos
as mãos e nos despedimos.
— Boa
sorte, Clay.
E
que mãos bonitas, pálidas, porém mornas, e o brilho de um sorriso
triste em seu olhar.
No
carro, Clay voltou-se para a janela e falou como quem não quer nada,
embora decidido.
— Sabe,
ela gosta de você.
Disse
isso enquanto nos afastávamos da escola.
É
curioso pensar que, um dia, eu acabaria me casando com aquela mulher.
***
Mais
tarde, Clay foi à biblioteca.
Chegou
às quatro e meia, e às cinco estava sentado entre duas grandes
pilhas de livros. Tudo que conseguiu encontrar sobre pontes. Milhares
de páginas, centenas de técnicas. Cada tipo, cada medida. Os
jargões todos. Clay folheou os volumes e não entendeu nada. Mas ele
gostava de ver as pontes: os arcos, as suspensões, os cantilévers.
— Rapaz...
— Ele ergueu o rosto. — Quer pegar algum desses emprestado? São
nove horas. Vai fechar.
Em
casa, ele cambaleou pela porta, sem acender as luzes. A bolsa azul
abarrotada de livros. Disse ao bibliotecário que passaria muito
tempo fora e conseguiu estender o prazo de devolução.
O
acaso não deixa barato, e, quando ele entrou, fui o primeiro que
encontrou, rondando o corredor tal qual o Minotauro.
Paramos,
ambos olhamos para o chão.
Uma
bolsa pesada daquele jeito falava por si.
À
penumbra, meu corpo parecia indiferente, mas meus olhos estavam
acesos. Eu estava cansado naquela noite, com muito mais que vinte
anos; era um ancião, lânguido e grisalho.
— Pode
passar.
No
caminho, ele viu que eu segurava uma chave inglesa; estava
consertando a torneira do banheiro. Eu não era nenhum Minotauro, era
a merda de um faz-tudo. Ficamos os dois encarando a bolsa de livros,
e o corredor parecia se fechar, prestes a nos esmagar.
***
Então
sábado, e a espera por Carey.
De
manhã, Clay deu umas voltas de carro com Henry, para acompanhá-lo
com os livros e discos nas vendas de garagem; ele assistia à
pechincha. Em uma calçada sinuosa havia uma coletânea de contos
chamada Pináculo infinito; um belo exemplar de bolso, com um
atleta saltando obstáculos em relevo na capa. Ele pagou um dólar e
presenteou Henry, que pegou o livro, abriu e sorriu.
— Garoto
— disse ele —, você é um lorde.
A
partir dali, caiu a noite.
Mas
eles precisavam de conquistas.
À
tarde, Clay foi até o Bernborough dar voltas na pista. Leu os livros
na arquibancada e começou a entender. Termos como compressão,
treliça e pegão aos poucos ganhavam sentido.
A
certa altura, ele correu pelo canal de escadarias entre os bancos
farpados. Ele se lembrou da garota de Starkey ali e sorriu por causa
dos lábios dela. Uma brisa sacolejava o campo interno, enquanto ele
disparava na reta final.
Faltava
pouco.
Ele
logo estaria nas cercanias.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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