[...]
Agora
El Indio voltou e está de pé perto da cabeceira da cama enquanto
estou ali sentado, e viro para olhar para o galo (“para domá-lo”)
– Estendo a mão da mesma forma que fiz com a galinha e deixo que
ele veja que não tenho medo que me bique, e vou acaricia-lo e
livrá-lo de todo o medo de mim – O Galo olha para minha mão sem
comentário, e olha para longe, e torna o olhar para mim, e encara
minha mão (o campeão melancólico seminal que sonha um ovo diário
para Tristessa que ela chupa até o fim depois de furá-lo, fresco) –
olha ternamente para minha mão mas acima de tudo majestosamente
enquanto a galinha não consegue fazer essa mesma avaliação
majestosa, ele é coroado e arrogante e pode uivar, é o Rei da Cerca
em duelo ardente com o amanhecer podre. Ele cacareja ao ver minha
mão, querendo dizer É, e se vira – e olho orgulhoso ao redor para
ver se Tristessa e El Indio ouviram meu estupiante selvagem – Eles
comemoram ao me ver com lábios ávidos, “Sim, estávamos
conversando sobre os dez gramas de morfina que vamos descolar amanhã
– É –” e eu me sinto orgulhoso por ter conquistado o Galo,
agora todos os bichinhos no quarto me conhecem e me amam e eu os amo
apesar de talvez não os conhecer. Todos, exceto O Cantor no telhado,
em cima do guarda-roupa, no canto, longe da beira, contra a parede
bem embaixo do teto, a Pomba arrulha confortável sentada no ninho,
sempre contemplando toda a cena, para sempre sem comentar. Ergo os
olhos, meu Senhor bate asas com o arrulhar branco de pomba e olho
para Tristessa para saber por que ela arranjou uma pomba e Tristessa
levanta as mãos macias de um jeito indefeso e olha para mim com
carinho e tristeza, para indicar, “É minha pomba” – “Minha
pombinha bonitinha – O que posso fazer?” “Eu gosto tanto dela”
– “É tão branquinha e bonitinha” – “Nunca faz barulho”
– “Tem olhos taum bonitus, você olha e vê os olhos taum
bonitus” e eu olho nos olhos da pomba e são apenas olhos de pomba,
abertos, perfeitos, escuros, poços, misteriosos, quase orientais, é
impossível aguentar a pureza tamanha que aqueles olhos emanam – E
são tão parecidos com os olhos de Tristessa que eu gostaria de
poder comentar e dizer a Tristessa “Tens os olhos da pomba” –
De
vez em quando a Pomba se levanta e bate as asas como exercício, em
vez de voar pelo ar triste ela espera em seu cantinho dourado do
mundo, espera a pureza perfeita, a morte, a Pomba na sepultura é
algo melancólico para ser celebrado – o corvo na sepultura não é
uma luz branca que ilumina os Mundos e aponta para cima e aponta para
baixo por entre os dez lados soberbos da Eternidade – Pobre Pomba,
pobres olhos – seu peito branco como neve, seu leite, sua torrente
de piedade sobre mim, seu olhar mesmo gentil, os olhos dentro dos
meus, das alturas otimistas de seu lugar no armário e nos arcabouços
dos Céus Abertos do Mundo da Mente – anjo dourado e otimista de
meus dias, e não posso tocá-la, não ousaria subir em uma cadeira e
prendê-la no canto e sorrir com um ranger de dentes para ela,
tentando impressioná-la em meu coração manchado de sangue – o
sangue dela.
El
Indio trouxe sanduíches e a gatinha está louca por um pouco de
carne e El Indio fica com raiva e a expulsa da cama com um tapa e eu
estendo minhas duas mãos para ele “Non” “Não faça isso” e
ele nem mesmo me escuta e Tristessa grita com ele – o grande Homem
Fera irado com a carne da cozinha e batendo na filha que está na
cadeira do outro lado do quarto até cair no chão, as lágrimas
começam a escorrer quando ela percebe o que fez – Não gosto de El
Indio porque ele bateu na gata. Mas ele não faz por maldade, é
apenas uma reprimenda, uma maneira dura, justificada de lidar com a
gata, chutá-la de seu caminho na sala quando vai atrás de seus
charutos e da televisão O Velho pai Tempo é El Indio, com as
crianças, a esposa, as noites na mesa de jantar estapeando os filhos
e conduzindo sobre grandes jantares com muita carne sob a luz mortiça
– “Buuurp! Braap!”, ele solta diante das crianças que olham
para ele com olhos reluzentes e cheios de admiração. Agora é
sábado à noite e ele está conversando com Tristessa e se
esforçando para explicar a ela, de repente a velha Cruz (que não é
velha, tem só quarenta) se levanta gritando “É, com nossa grana,
si, com nuestro dinero” e repete duas vezes, soluça, e El Indio a
avisa que eu posso entender (quando ergo os olhos com magnificência
imperial de indiferença com um toque de respeito pela cena) e como
se dissesse “Esta mulher chora porque vocês pegam todo o seu
dinheiro” – o que é isso? Rússia? Mússia? Matamorapússia?
Como se eu não me importasse de nenhum jeito que não pudesse. Tudo
o que queria era ir embora. Tinha me esquecido completamente da pomba
e só me lembrei dela dias mais tarde.
A
maneira selvagem como Tristessa fica de pé, as pernas afastadas, no
meio do quarto para explicar algo, como um viciado em uma esquina do
Harlem, ou em qualquer outro lugar, Cairo, Bang Bombayo e todo o
Bando de Felás dos Palmeirais da Extremidade das Bermudas às asas
de albatroz pousadas que cobrem de penas as rochosas da costa do
Ártico, só o veneno que servem das focas Gloogloo dos esquimós e
as águias da Groenlândia, não é tão ruim quanto aquela morfina
da Civilização Alemã à qual ela (uma índia) é forçada a se
submeter e a morrer por ela em sua terra nativa.
Enquanto
isso o gato está abrigado confortavelmente perto do lugar do rosto
de Cruz, onde ela está deitada ao pé da cama, enrascada, do jeito
que dorme a noite inteira enquanto Tristessa se enrosca na cabeceira
e elas entrelaçam os pés como irmãs ou como mãe e filha e fazem
com que uma cama pequena seja confortável para as duas – O gatinho
rosa tem tanta certeza (apesar de todas as suas pulgas que cruzam seu
focinho ou passeiam por suas pestanas) – que está tudo bem – que
está tudo certo no mundo (pelo menos agora) – quer ficar perto do
rosto de Cruz, onde está tudo bem – Ele (na verdade uma Elazinha)
ele não percebe as ataduras e o pesar e os horrores de bebedeira e
ressaca pelos quais ela está passando, sabe apenas que ela é a
senhora todo o dia suas pernas estão na cozinha e de vez em quando
ela joga comida para ele e, além disso, ela brinca com ele na cama e
finge que vai bater nele e o segura e briga com ele que faz uma
carinha naquela cabecinha e pisca os olhos e abana as orelhas para
trás para esperar o tapa mas ela está só brincando com ele –
Então agora ele se senta em frente a Cruz e apesar de nós
gesticularmos como maníacos quando falamos e às vezes uma mão
pesada passar perto de suas orelhas, quase acertando-o ou El Indio
poder de repente resolver jogar um jornal sobre a cama e acertar bem
em cima da cabeça dele, mesmo assim ele fica sentado e curte a gente
com olhos fechados e encolhido em um estilo Gato Buda, meditativo em
meio a nossas atitudes alucinadas como a Pomba acima – Eu me
pergunto: “Será que o gatinho sabe que tem um pombo no
guarda-roupa?” Queria que meus parentes de Lowell estivessem aqui
para ver como vivem as pessoas e os animais no México –
Mas
o pobre do gatinho é uma massa de pulgas, mas ele não se importa,
não fica se coçando como gatos americanos mas apenas resiste – Eu
o pego do chão e ele é apenas um esqueletinho magrelo com grandes
balões de pelo – Tudo é tão pobre no México, as pessoas são
pobres, mas mesmo assim tudo o que eles fazem é feliz e
despreocupado, não importa o que seja – Tristessa é uma viciada e
lida com isso magra e despreocupada, enquanto uma americana seria
melancólica – Mas ela tosse e reclama o dia inteiro, e pela mesma
lei, de vez em quando, o gato começa a coçar-se furiosamente, o que
não ajuda –.
Jack Kerouac, in Tristessa
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