1975.
O jornalista Wladimir Herzog não resiste à tortura e morre nos
porões do II Exército. Versão oficial: suicídio. A Igreja
organiza uma missa de protesto na Catedral da Sé. Manifestações
contra o regime eram proibidas. Mas como proibir uma missa? No
entardecer, a polícia monta barreiras para congestionar a cidade e
dificultar o acesso à catedral. A praça é cercada para intimidar
os que chegam. Agentes do Dops fotografam e filmam os presentes.
Havia algo no ar: protesto.
1977.
Universitários organizam uma passeata no centro da cidade para pedir
o fim da ditadura e a anistia aos presos políticos. Erasmo Dias
ameaça: “A polícia vai agir contra esses baderneiros.” O
governador Paulo Egídio, versão oficial, chama a imprensa e
denuncia que os estudantes estão sendo manipulados por organizações
“marxistas-leninistas”. A passeata acontece. O confronto é
inevitável. Pancadaria no largo São Francisco, no viaduto do Chá e
na praça da Sé. A polícia inova. Bombas de fumaça amarela, verde
e vermelha. Lembram uma viagem de ácido. Havia algo no ar: rebeldia.
1984.
Mais de 300 mil pessoas na praça da Sé participam de um dos
primeiros comícios das “Diretas-Já”. No Jornal Nacional, versão
oficial, um repórter entra ao vivo e, cínico, diz que aquelas
pessoas comemoram o aniversário da cidade. Revoltada, a população
passa a gritar: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”
Alguns carros da emissora são virados. Repórteres têm de esconder
o logotipo da empresa. Havia algo no ar: futuro.
1991.
Sábado. Vai atravessar a praça? Esconda o relógio e certifique-se
de que a carteira está num lugar seguro. A polícia, agora, é
aliada, fica ao seu lado. Algumas prostitutas, de 14 anos, se
oferecem. Crentes pregam. Aleluia! Doentes por toda parte. Aleluia!
Uma centena de desocupados. No espelho d’água, uma menina de 13
anos, moradora da praça, lava roupas. É linda, de olhos vivos.
Muitos vão até ela e propõem uma rapidinha. Não. Ela tem de lavar
a roupa do seu “marido”, Tim Maia, uma gorda que frita a banha no
sol.
Fim
da tarde. Enquanto ela borrifa a roupa com um desodorante barato, Tim
Maia se levanta e decide assaltar mais um. A versão oficial pede
para limpar a praça, aumentar o policiamento, proibir os
marreteiros; quer, na verdade, esconder aquilo no que o país se
transformou. Tentei traçar um paralelo entre a praça de antes e a
de depois. Deve haver uma relação de causa e efeito. Alguma coisa
deu errado. Não há nada no ar.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola
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