O
rio Grande ensinava preguiça. Escorria sonolento. Ia como quem não
quer ir. Empurrado. O Heládio Brito, poeta, sabe o ser dos rios: “Eu
vim de ver o rio, o frouxo ir das águas, pesadas delas mesmas,
grossas das lonjuras vindas no irem sendo rio. Líquido boi cansado
carregado de peixes...” . Guimarães Rosa, talvez contemplando
o São Francisco, confessou o seu amor pelos rios. “Amo os
grandes rios, pois são profundos como a alma dos homens. Na
superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são
tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens.
Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim,
rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade...” E
Heráclito, o obscuro, filósofo grego, tomou o rio como a imagem do
mundo. Tudo é rio. Tudo passa sem parar. Não se pode entrar no
mesmo rio duas vezes. Assim era o rio Grande. Ensinava filosofia.
Filosofia tao.
Mas,
ao se aproximar de Lavras, o rio Grande era repentinamente espremido
numa estreitíssima garganta de pedras, pela qual as águas passavam
com fúria. Era o “funil” que passou a ser agregado ao nome da
cidade que virou Lavras do Funil. Lugar de perigo. Muitos distraídos
foram tragados pelas águas. Mas era um lugar bom de se pescar porque
os peixes, subindo o rio manso em busca das nascentes, eram parados
pela força das águas. Pesquei lá muitas vezes. Hoje não existe
mais. Construíram uma barragem. O funil foi coberto pelas águas do
progresso. Sua fúria amansou. Na fundura serena das águas não mais
estranguladas pela garganta estreita os peixes nadam tranquilamente.
Dali para baixo o rio ficava preguiçoso de novo, prestando-se à
navegação. Foi então que homens progressistas da cidade de Lavras,
entre eles o doutor Jorge, avô materno de minha mãe, e o seu genro
capitão Evaristo, pai de minha mãe, tiveram a ideia de montar uma
companhia de navegação que, começando no porto de Ribeirão
Vermelho, a oito quilômetros de Lavras, desceria até Boa Esperança.
O vapor, parecido com aqueles do rio Mississipi, veio dos Estados
Unidos. Imagino que o seu transporte do Rio de Janeiro até Ribeirão
Vermelho deve ter sido uma epopeia a se comparar com a epopéia do
transporte da pedra do altar para o convento de Mafra descrito por
Saramago, no seu livro Memorial do convento. Rio abaixo, de
Ribeirão Vermelho a Boa Esperança, a viagem levava dia e meio. O
vapor, elegante, era dotado de camarotes. Rio acima, três dias, duas
noites sobre as águas. Devia ser bonito e silencioso. Foi nesse
vapor que os casadinhos de novo, meu pai e minha mãe, viajaram
naquele dia de começo de setembro do ano de 1919. Os ipês amarelos
estavam em flor.
Aquele
casamento ligava duas fortunas e dois sangues: um sangue ruim,
misturado, e um sangue azul, supostamente puro. Mas plebeu que se
casa com princesa fica nobre. A excelentíssima esposa do filho da
dona Sophia tinha sangue azul e era pianista. Seu piano Pleyel,
presente de casamento do capitão Evaristo, seu pai, em breve
chegaria a Dores diretamente de Paris, alterando a estatística do
Almanak. Realizava-se o sonho da dona Sophia.
O
foguetório era para anunciar que os nubentes acabavam de desembarcar
do vapor Doutor Jorge, no porto do rio Grande, depois de uma
viagem de um dia e meio rio abaixo, desde o porto de Ribeirão
Vermelho. Todo mundo tinha de saber. Naquele momento a comitiva
estava a caminho, os homens cavalgando em selas e arreios, minha mãe
cavalgando em silhão porque em Dores não havia liteira. Silhão, se
é que você não sabe, foi a solução encontrada pelos artesãos
defensores da castidade para evitar a indecência de uma mulher
cavalgando de pernas abertas, como os homens. No silhão cavalgava-se
assentado. De fato, era perigoso para uma mulher cavalgar de pernas
abertas, mormente se fosse virgem. Havia sempre duas possibilidades,
pelo menos na imaginação dos homens. Primeira, que a virgem viesse
a perder sua virgindade, o que a infelicitaria pelo resto da vida,
posto que o marido não acreditaria nas explicações que ela daria
na noite de núpcias. Segunda, mais realista, que as pressões
rítmicas da sela sobre as partes secretas da mulher viessem a lhe
causar prazeres proibidos. Aqueles movimentos do cavalo,
especialmente se for trotão, sugerem imediatamente os movimentos de
um coito e os seus deleites, coisa que eventualmente era confirmada
pelo sorriso de prazer da amazona. Ora, isso é incompatível com o
caráter puro de uma excelentíssima mulher honesta. Mulheres
honestas não gostam de sexo. Por isso a mulher tinha de ir assentada
no silhão, pernas castamente fechadas, o seu cavalo a andar passo a
passo, como se estivesse seguindo uma procissão.
O
vapor Doutor Jorge, eu o vi 22 anos depois, quando tinha sete
anos, afundado no porto de Ribeirão Vermelho. Dizem que a sua
chaminé ainda pode ser vista hoje quando o rio está baixo.
Minha
avó sorriu feliz. O seu sonho de nobreza, acrescentado ao da
riqueza, estava realizado.
Rubem Alves, in O Velho que Acordou Menino
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