quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Hollywood | 30




Jon Pinchot escapara do gueto. Em seu contrato, dizia-se que lhe providenciariam um apartamento, a ser pago pela Firepower. Ele encontrara um apartamento perto do prédio da empresa. Toda noite, de sua cama, via o anúncio luminoso no alto do edifício, Firepower, cuja luz passava pela janela e batia em seu rosto enquanto dormia.
François Racine permanecia no gueto. Iniciara uma horta, onde cultivava legumes. Girava a sua roleta, cuidava da horta e dava de comer às galinhas. Era um dos homens mais estranhos que já conheci.
Não posso deixar minhas galinhas – me disse. – Morrerei nesta terra estranha com minhas galinhas, aqui no meio dos negros.
Eu ia ao hipódromo nos dias de corrida e o filme continuava sendo rodado.
O telefone tocava todo dia. Gente querendo entrevistar o escritor. Eu nunca imaginara que houvesse tantas revistas de cinema ou interessadas em cinema. Era um nojo: aquele grande interesse por um veículo incansável e consistentemente incapaz de produzir qualquer coisa. As pessoas se acostumavam tanto a ver merda que não mais percebiam que era merda.
As corridas eram outro desperdício de vida e esforço humano. As pessoas marchavam até os guichês com seu dinheiro e o trocavam por pedacinhos de papel numerado. Quase nenhum dos números valia alguma coisa. Além disso, o hipódromo e o estado tomavam 18% de cada dólar, que dividiam entre si. Os maiores idiotas iam ao cinema e às corridas. Eu era um idiota que ia às corridas. Mas me saía melhor que a maioria, porque, após décadas frequentando o hipódromo, aprendera um ou dois truquezinhos. Para mim, era um passatempo, e eu nunca perdia a cabeça com o meu dinheiro. Uma vez que se foi pobre por longo tempo, adquire-se um certo respeito pelo dinheiro. Nunca mais se quer deixar de tê-lo, de modo algum. Isso é para santos e tolos. Um dos meus sucessos na vida foi que, apesar de todas as loucuras que fiz, era perfeitamente normal: escolhi fazer essas coisas, não foram elas que me escolheram.
De qualquer modo, uma noite o telefone tocou. Era Jon Pinchot.
Não sei o que fazer... – ele disse.
Friedman tornou a cancelar o filme?
Não, não é isso... Não sei como esse cara conseguiu o número do meu telefone...
Que cara?
Acabou de me ligar.
Que foi que disse?
Disse: “SEU FILHO DA PUTA, VOCÊ MATOU MEU IRMÃO! AGORA EU VOU TE MATAR! VOU TE MATAR ESTA NOITE!”
Nossa...
Estava soluçando, parecia fora de si, parecia muito real. Talvez seja. Nesta cidade, a gente nunca sabe...
Chamou a polícia?
Chamei.
Que foi que eles disseram?
– “Chame a gente quando ele chegar aí.”
Pode vir pra cá...
Não, obrigado, está tudo bem... mas tenho certeza de que não vou conseguir dormir esta noite...
Tem arma?
Não, amanhã vou arranjar uma, mas aí talvez seja tarde demais.
Vá pra um motel...
Não, ele pode estar à espreita...
Que é que eu posso fazer?
Nada. Eu só queria te dizer e te agradecer por ter escrito o argumento.
Tudo bem.
Boa noite, Hank...
Boa noite, Jon...
Ele desligou.
Eu sabia como ele se sentia. Um cara me telefonou uma vez e disse que ia me matar porque eu trepara com a mulher dele. Me chamou pelo meu último nome e avisou que estava vindo. Não conseguiu. Deve ter morrido num acidente de trânsito.
Decidi ligar para François Racine, para ver como ele ia indo.
Falei com a secretária eletrônica dele:
NÃO FALE COMIGO, FALE COM ESTA MÁQUINA. EU NÃO QUERO FALAR. FALE COM ESTA MÁQUINA. NÃO ESTOU EM LUGAR NENHUM E VOCÊ TAMBÉM. A MORTE VEM COM MÃOZINHAS PEQUENAS PRA NOS AGARRAR. EU NÃO QUERO FALAR. FALE COM ESTA MÁQUINA.
Soou o bip.
François, seu cabeça de merda...
Oh, é você, Hank?
Ééé, baby...
Teve um incêndio... um incêndio... INCÊNDIO...
Quê?
É, eu comprei uma TV preto e branco barata... deixei ligada um tempo e saí... queria enganar eles... Fazer eles pensarem que tinha alguém em casa... Acho que enquanto estava fora a TV pegou fogo ou explodiu... Quando voltei, do carro, vi aquela fumaceira toda... O Corpo de Bombeiros não vem até aqui... Toda esta quadra podia estar em chamas, que eles não viriam... Atravessei a fumaça... Tinha chamas... Os negros estavam lá dentro... Os assassinos e os ladrões... Usavam baldes d’água e corriam para dentro e para fora apagando o fogo... Eu me sentei e fiquei olhando... Peguei uma garrafa de vinho, abri e bebi... Os negros corriam de um lado pra outro... Em breve o fogo estava apagado... Tinha brasas e muita fumaça. A gente tossia. “Sinto muito, cara”, me disse um dos negros. “A gente chegou tarde. Estava numa reunião da gangue... alguém sentiu cheiro de fumaça...” “Obrigado”, eu disse a eles. Um deles tinha um quartilho de gim, passamos a garrafa em volta, e eles foram embora...
Sinto muito, François... Nossa, não sei o que dizer... Isso aí ainda está habitável?
Estou sentado no meio da fumaça, no meio da fumaça... Parece uma neblina, uma neblina... Estou com os cabelos brancos... sou um velho, sentado no meio da fumaça... Agora sou um menino, sentado no meio da fumaça... Ouço a voz da minha mãe... Oh, não! Ela está gemendo! Está sendo FODIDA! Está sendo FODIDA por uma pessoa terrível! Preciso voltar pra França, preciso ajudar minha mãe, preciso ajudar a França!
François, você pode ficar aqui... ou então tenho certeza de que Jon tem espaço... Não é tão ruim quanto você pensa... Toda nuvem negra passa...
Não, não, às vezes tem uma nuvem negra que nunca passa. Fica lá eternamente!
Bem, isso é a morte!
Todo dia de vida é a morte! Vou voltar pra França! Vou voltar a ser ator!
François, e as galinhas? Você adora as galinhas, lembra?
Fodam-se as galinhas. Que os negros fiquem com elas! Que a carne negra e a carne branca se cruzem!
Carnes se cruzem? – perguntei.
Estou na neblina. Teve um incêndio. Um incêndio. Eu sou um velho, meu cabelo está branco. Sentado no meio da fumaça... vou desligar…
Desligou.
Tentei de novo. Só consegui o “NÃO FALE COMIGO, FALE COM ESTA MÁQUINA...”
Fiz votos que ele tivesse uma ou duas garrafas de bom vinho tinto para atravessar a noite, porque parecia que, se algum dia alguém precisara disso, era meu amigo François. A não ser que fosse meu amigo Jon. Ou eu. Abri uma.
Quer tomar um ou dois copinhos? – perguntei a Sarah.
Sem dúvida – ela respondeu. – Que foi que houve?
Contei a ela.

Charles Bukowski, in Hollywood

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