Jon
Pinchot escapara do gueto. Em seu contrato, dizia-se que lhe
providenciariam um apartamento, a ser pago pela Firepower. Ele
encontrara um apartamento perto do prédio da empresa. Toda noite, de
sua cama, via o anúncio luminoso no alto do edifício, Firepower,
cuja luz passava pela janela e batia em seu rosto enquanto dormia.
François
Racine permanecia no gueto. Iniciara uma horta, onde cultivava
legumes. Girava a sua roleta, cuidava da horta e dava de comer às
galinhas. Era um dos homens mais estranhos que já conheci.
– Não
posso deixar minhas galinhas – me disse. – Morrerei nesta terra
estranha com minhas galinhas, aqui no meio dos negros.
Eu
ia ao hipódromo nos dias de corrida e o filme continuava sendo
rodado.
O
telefone tocava todo dia. Gente querendo entrevistar o escritor. Eu
nunca imaginara que houvesse tantas revistas de cinema ou
interessadas em cinema. Era um nojo: aquele grande interesse por um
veículo incansável e consistentemente incapaz de produzir qualquer
coisa. As pessoas se acostumavam tanto a ver merda que não mais
percebiam que era merda.
As
corridas eram outro desperdício de vida e esforço humano. As
pessoas marchavam até os guichês com seu dinheiro e o trocavam por
pedacinhos de papel numerado. Quase nenhum dos números valia alguma
coisa. Além disso, o hipódromo e o estado tomavam 18% de cada
dólar, que dividiam entre si. Os maiores idiotas iam ao cinema e às
corridas. Eu era um idiota que ia às corridas. Mas me saía melhor
que a maioria, porque, após décadas frequentando o hipódromo,
aprendera um ou dois truquezinhos. Para mim, era um passatempo, e eu
nunca perdia a cabeça com o meu dinheiro. Uma vez que se foi pobre
por longo tempo, adquire-se um certo respeito pelo dinheiro. Nunca
mais se quer deixar de tê-lo, de modo algum. Isso é para santos e
tolos. Um dos meus sucessos na vida foi que, apesar de todas as
loucuras que fiz, era perfeitamente normal: escolhi fazer essas
coisas, não foram elas que me escolheram.
De
qualquer modo, uma noite o telefone tocou. Era Jon Pinchot.
– Não
sei o que fazer... – ele disse.
– Friedman
tornou a cancelar o filme?
– Não,
não é isso... Não sei como esse cara conseguiu o número do meu
telefone...
– Que
cara?
– Acabou
de me ligar.
– Que
foi que disse?
– Disse:
“SEU FILHO DA PUTA, VOCÊ MATOU MEU IRMÃO! AGORA EU VOU TE MATAR!
VOU TE MATAR ESTA NOITE!”
– Nossa...
– Estava
soluçando, parecia fora de si, parecia muito real. Talvez seja.
Nesta cidade, a gente nunca sabe...
– Chamou
a polícia?
– Chamei.
– Que
foi que eles disseram?
– “Chame
a gente quando ele chegar aí.”
– Pode
vir pra cá...
– Não,
obrigado, está tudo bem... mas tenho certeza de que não vou
conseguir dormir esta noite...
– Tem
arma?
– Não,
amanhã vou arranjar uma, mas aí talvez seja tarde demais.
– Vá
pra um motel...
– Não,
ele pode estar à espreita...
– Que
é que eu posso fazer?
– Nada.
Eu só queria te dizer e te agradecer por ter escrito o argumento.
– Tudo
bem.
– Boa
noite, Hank...
– Boa
noite, Jon...
Ele
desligou.
Eu
sabia como ele se sentia. Um cara me telefonou uma vez e disse que ia
me matar porque eu trepara com a mulher dele. Me chamou pelo meu
último nome e avisou que estava vindo. Não conseguiu. Deve ter
morrido num acidente de trânsito.
Decidi
ligar para François Racine, para ver como ele ia indo.
Falei
com a secretária eletrônica dele:
– NÃO
FALE COMIGO, FALE COM ESTA MÁQUINA. EU NÃO QUERO FALAR. FALE COM
ESTA MÁQUINA. NÃO ESTOU EM LUGAR NENHUM E VOCÊ TAMBÉM. A MORTE
VEM COM MÃOZINHAS PEQUENAS PRA NOS AGARRAR. EU NÃO QUERO FALAR.
FALE COM ESTA MÁQUINA.
Soou
o bip.
– François,
seu cabeça de merda...
– Oh,
é você, Hank?
– Ééé,
baby...
– Teve
um incêndio... um incêndio... INCÊNDIO...
– Quê?
– É,
eu comprei uma TV preto e branco barata... deixei ligada um tempo e
saí... queria enganar eles... Fazer eles pensarem que tinha alguém
em casa... Acho que enquanto estava fora a TV pegou fogo ou
explodiu... Quando voltei, do carro, vi aquela fumaceira toda... O
Corpo de Bombeiros não vem até aqui... Toda esta quadra podia estar
em chamas, que eles não viriam... Atravessei a fumaça... Tinha
chamas... Os negros estavam lá dentro... Os assassinos e os
ladrões... Usavam baldes d’água e corriam para dentro e para fora
apagando o fogo... Eu me sentei e fiquei olhando... Peguei uma
garrafa de vinho, abri e bebi... Os negros corriam de um lado pra
outro... Em breve o fogo estava apagado... Tinha brasas e muita
fumaça. A gente tossia. “Sinto muito, cara”, me disse um dos
negros. “A gente chegou tarde. Estava numa reunião da gangue...
alguém sentiu cheiro de fumaça...” “Obrigado”, eu disse a
eles. Um deles tinha um quartilho de gim, passamos a garrafa em
volta, e eles foram embora...
– Sinto
muito, François... Nossa, não sei o que dizer... Isso aí ainda
está habitável?
– Estou
sentado no meio da fumaça, no meio da fumaça... Parece uma neblina,
uma neblina... Estou com os cabelos brancos... sou um velho, sentado
no meio da fumaça... Agora sou um menino, sentado no meio da
fumaça... Ouço a voz da minha mãe... Oh, não! Ela está gemendo!
Está sendo FODIDA! Está sendo FODIDA por uma pessoa terrível!
Preciso voltar pra França, preciso ajudar minha mãe, preciso ajudar
a França!
– François,
você pode ficar aqui... ou então tenho certeza de que Jon tem
espaço... Não é tão ruim quanto você pensa... Toda nuvem negra
passa...
– Não,
não, às vezes tem uma nuvem negra que nunca passa. Fica lá
eternamente!
– Bem,
isso é a morte!
– Todo
dia de vida é a morte! Vou voltar pra França! Vou voltar a ser
ator!
– François,
e as galinhas? Você adora as galinhas, lembra?
– Fodam-se
as galinhas. Que os negros fiquem com elas! Que a carne negra e a
carne branca se cruzem!
– Carnes
se cruzem? – perguntei.
– Estou
na neblina. Teve um incêndio. Um incêndio. Eu sou um velho, meu
cabelo está branco. Sentado no meio da fumaça... vou desligar…
Desligou.
Tentei
de novo. Só consegui o “NÃO FALE COMIGO, FALE COM ESTA
MÁQUINA...”
Fiz
votos que ele tivesse uma ou duas garrafas de bom vinho tinto para
atravessar a noite, porque parecia que, se algum dia alguém
precisara disso, era meu amigo François. A não ser que fosse meu
amigo Jon. Ou eu. Abri uma.
– Quer
tomar um ou dois copinhos? – perguntei a Sarah.
– Sem
dúvida – ela respondeu. – Que foi que houve?
Contei
a ela.
Charles Bukowski, in Hollywood
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