A
família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão
caído, Sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de
travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e
o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza.
Estava
um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os
ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão
distante.
Fabiano
esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições com a ponta da
alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu, um círculo de luz
espalhou-se em redor da trempe de pedras, clareando vagamente os pés
do vaqueiro, os joelhos da mulher e os meninos deitados. - De quando
em quando estes se mexiam, porque o lume era fraco e apenas aquecia
pedaços deles. Outros pedaços esfriavam recebendo o ar que entrava
pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não
podiam dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se, tinham
precisão de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a conversa dos
pais. Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas,
com repetições e incongruências. As vezes uma interjeição
gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles
prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que
lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se,
não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram
minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.
Fabiano
tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa,
mas como só estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou
despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se
pudesse ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da
narração, mas assim no escuro a dificuldade era grande.
Levantou-se, foi a um canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de
lenha. Sinha Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano
condenou a interrupção, achou que o procedimento do filho revelava
falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O pequeno
escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se pôs francamente
do lado dele.
– Hum!
hum! Que brabeza!
Aquele
homem era assim mesmo, tinha o coração perto da goela.
– Estourado.
Remexeu
as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou entre as pedras achas
de angico molhado, procurou acendê-las. Fabiano ajudou-a: suspendeu
a tagarelice, pôs-se de quatro pés e soprou os carvões, enchendo
muito as bochechas. Uma fumarada invadiu a cozinha, as pessoas
tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitória manejou o abano, e
passado um minuto as labaredas espirraram entre as pedras.
O
círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na sombra,
vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo, ia-se tornando
indistinto daí para cima, era um negrume que vagos clarões
cortavam. Desse negrume saiu novamente a parolagem mastigada.
Fabiano
estava de bom humor. Dias antes a enchente havia coberto as marcas
postas no fim da terra de aluvião, alcançava as catingueiras,
quedeviam estar submersas. Certamente só apareciam as folhas, a
espuma subia, lambendo ribanceiras que se desmoronavam.
Dentro
em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano não pensava no
futuro. Por enquanto a inundação crescia, matava bichos, ocupava
grotas e várzeas. Tudo muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não
havia o perigo da seca imediata, que aterrorizara a família durante
meses. A catinga amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a
emagrecer e horríveis visões de pesadelo tinham agitado o sono das
pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da
cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o trovão roncara
perto, na escuridão da meia-noite rolaram nuvens cor de sangue. A
ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera relâmpagos em
demasia - e Sinha Vitória se escondera na camarinha com os filhos,
tapando as orelhas, enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade
findara de chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera
arrastando troncos e animais mortos. A água tinha subido, alcançado
a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do
pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água
topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria invadida, os
moradores teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como
preás.
Suspirava
atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco. Deus não permitiria
que sucedesse tal desgraça.
– An!
A casa era forte. – An! Os esteios de aroeira estavam bem fincados
no chão duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões
que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a
família.
– An!
As
varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de aroeira. O
arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E quando elas
baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam todos no mato, como
preás. Mas voltariam quando as águas baixassem, tirariam do
barreiro terra para vestir o esqueleto da casa.
– An!
Sinha
Vitória moveu o abano com força para não ouvir a barulho do rio,
que se aproximava. Seria que ele estava com intenção de progredir?
O abano zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, um sopro que
esmorecia para lá dos juazeiros.
Fabiano
contava façanhas. Começara moderadamente, mas excitara-se pouco a
pouco e agora via os acontecimentos com exagero e otimismo, estava
convencido de que praticara feitos notáveis. Necessitava esta
convicção. Algum tempo antes acontecera aquela desgraça: o soldado
amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o
na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças,
vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca chegasse,
ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo,
depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias
assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação. Mas a
trovoada roncara, viera a cheia, e agora as goteiras pingavam, o
vento entrava pelos buracos das paredes.
Fabiano
estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era grande,
aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzuê terrível, esquecia as
pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos importantes.
O
rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não havia notícia
de que os houvesse atingido – e Fabiano, seguro, baseado nas
informações dos mais velhos, narrava uma briga de que saíra
vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela.
As
vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a
chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto
novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se
enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele Fabiano,
a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitória
adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau de varas
onde se espichavam era incômodo.
Fabiano
gesticulava. Sinha Vitória agitava o abano para sustentar as
labaredas no angico molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda e
calor na outra, não podiam dormir e escutavam as lorotas do pai.
Começaram a discutir em voz baixa uma passagem obscura da narrativa.
Não conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam se atracando.
Fabiano zangou-se com a impertinência deles e quis puni-los. Depois
moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando palavras
diferentes.
O
menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano, que se
agitavam por cima das labaredas, escuras e vermelhas. As costas
ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e cor de sangue.
Era como se Fabiano tivesse esfolado um animal. A barba ruiva e
emaranhada estava invisível, os olhos azulados e imóveis fixavam-se
nos tições, a fala dura e rouca entrecortava-se de silêncios.
Sentado no pilão, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele
jeito de bicho lerdo que não se aguenta em dois pés.
O
menino mais velho estava descontente. Não podendo perceber as
feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo bem. Mas surgira
uma dúvida. Fabiano modificara a história – e isto reduzia-lhe a
verossimilhança. Um desencanto. Estirou-se e bocejou. Teria sido
melhor a repetição das palavras. Altercaria com o irmão procurando
interpretá-las. Brigaria por causa das palavras – e a sua
convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não.
Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e
contraditório. O menino mais velho recordou-se de um brinquedo
antigo, presente de seu Tomás da bolandeira. Fechou os olhos,
reabriu-os, sonolento. O ar que entrava pelas rachas das paredes
esfriava-lhe uma perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os
pedaços de Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno
entristecera vendo as peças inúteis. Lembrou-se dos currais feitos
de seixos miúdos, sob as catingueiras.
Agora
a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele construíra. O
barreiro também se enchera, atingia a parede da cozinha, as águas
dele juntavam-se às da lagoa. Para ir ao quintal onde havia
craveiros e panelas de losna, Sinha Vitória saía pela porta da
frente, descia o copiar e atravessava a porteira de baraúna. Atrás
da casa, as cercas, o pé de turco e as catingueiras estavam dentro
da água. As goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os
sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos
sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado.
Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capões de mato
onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá sapos.
E a cantiga deles subia e descia, uma toada lamentosa enchia os
arredores. Tentou contar as vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com
certeza havia uma infinidade de sapos nas moitas e nos capões. Que
estariam fazendo?Por que gritavam a cantoria gorgolejada e triste?
Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes invisíveis da
terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se, acomodou-se, adormeceu,
uma banda aquecida pelo fogo, a outra banda protegida pelas nádegas
de Sinha Vitória.
O
abano agitava-se, a madeira úmida chiava, o vulto de Fabiano
iluminava-se e escurecia.
Baleia,
imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que a família se
recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia. No campo,
seguindo uma rês, se esgoelava demais. Natural. Mas ali, a beira do
fogo, para que tanto grito? Fabiano estava-se cansando à toa. Baleia
se enjoava, cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia
retirar os carvões e a cinza, varrer o chão, deitar-se na cama de
varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo do
caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava
os movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas
incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e
daquela vigilância a que a tinham habituado. Varrido o chão com
vassourinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia,
adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e ouvindo
rumores desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos
sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam
visitá-la.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas
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