Senti
tocar-me no ombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes,
mudos, inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos a
conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma
carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão trêmula.
Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre
mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que
durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim Virgília
contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.
O
marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima
e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das
nossas entrevistas externas; limitava-se a precavê-lo contra a minha
intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília leu
a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.
– Calúnia?
perguntou Lobo Neves.
– Infame.
O
marido respirou; mas, tomando à carta, parece que cada palavra dela
lhe fazia com o dedo um sinal negativo, cada letra bradava contra a
indignação da mulher. Esse homem, aliás intrépido, era agora a
mais frágil das criaturas.
Talvez
a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião a
fitá-lo sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca
invisível lhe repetiu ao ouvido as chulas que ele escutara ou
dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque
tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que estava salva;
mostrou-se irritada com a insistência, jurou que da minha parte só
ouvira palavras de gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum
namorado sem ventura. E citou alguns, – um que a galante ara
francamente, durante algumas semanas, outro que lhe escrevera uma
carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com
circunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo
que, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia de maneira que eu
não voltaria lá.
Ouvi
tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação
que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me
inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranquilidade moral de
Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de
remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a
cabeça, porque eu olhava então para o soalho, e disse com certa
amargura:
– Você
não merece os sacrifícios que lhe faço.
Não
lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e
terror daria à nossa situação o sabor cáustico dos primeiros
dias; mas se lho dissesse, não é impossível que ela chegasse lenta
e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe
disse nada. Ela batia nervosamente com a ponta do pé no chão;
aproximei-me e beijei-a na testa.
Virgília
recuou, como se fosse um beijo de defunto.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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