Você
viajou, veio de longe para conversar comigo. Queria que eu o ajudasse
a colocar ordem no seu albergue. O corpo é um albergue, você sabe.
Nele moram muitos pensionistas com a mesma cara. Lição que aprendi
de um demônio que, respondendo a uma pergunta de Jesus sobre o seu
nome, respondeu que era Legião, porque eram muitos. O caso mais
famoso é o de Fernando Pessoa, nome de batismo de um corpo em que
muitas pessoas diferentes moraram, algumas ao mesmo tempo, outras
sucessivamente, cada uma pensando e escrevendo de um jeito. Sobre o
assunto aconselho você e todos os leitores a verem o filme Quero
ser John Malcovitch.
Você
me contou sobre alguns dos seus pensionistas. Primeiro, o palhaço.
Não por acidente, mas por vocação e profissão, com nariz vermelho
e tudo o mais, que divertia as crianças. Eis aí um personagem que
precisa viver sempre. O riso é, talvez, o remédio mais poderoso
para nos ajudar a conviver com a tristeza. O riso do palhaço é
sempre um raio de luz na escuridão. Nietzsche se dizia palhaço.
Palhaço e poeta. As duas vocações se complementam.
Outro
foi um vendedor de cachorro-quente. Para ganhar a vida. Diferente.
Você se divertia com os seus cachorros e estava sempre inventando
novas raças.
Agora
é um professor universitário com a terrível responsabilidade de
escrever artigos científicos e se comportar devidamente. Advirto-o
de que palhaços e professores universitários não convivem bem.
Você sabe disso por experiência própria. Palhaços são leves,
flutuam; professores universitários são graves, afundam. É
proibido fazer humor em teses de mestrado e doutorado.
E
há, por fim, o mais terrível de todos os personagens: o apaixonado.
A paixão é uma perturbação da tranquilidade da alma. Abelardo,
professor universitário, se deu muito mal, permitindo-se ficar
apaixonado pela Heloísa. Foi a sua desgraça. A estória dos seus
amores está contada no filme Em nome de Deus. Ele mesmo,
Abelardo, rigoroso professor de filosofia, confessou que, tomado pela
paixão, deixou de preparar suas aulas e passou a dedicar-se à
poesia. Como você sabe, poesia não dá respeitabilidade acadêmica.
Tudo
seria simples se cada um dos personagens tivesse morado no seu corpo
numa temporada de curta duração, partindo depois para destino
ignorado. Não é esse o seu caso. Na realidade, suspeito que haja
muitos outros, sobre que você não falou. Falarei sobre um deles, no
final. Acontece que todos eles continuam a morar no seu albergue,
numa orgia que não lhe dá sossego.
Quero
dizer-lhe duas coisas. Pelo que ouvi, não me parece que qualquer um
deles tenha disposição para mudar de casa. Isso é ruim, porque
você nunca terá paz. Seria tão melhor se você fosse 100%
cientista, que só pensasse em pesquisa e artigos! Você teria uma
única direção – e mesmo as suas possíveis paixões seriam
submetidas ao critério acadêmico. Você se casaria com uma
cientista, trabalhariam os dois nos domingos em suas pesquisas, e
nenhum reclamaria do outro. Nenhum estaria querendo ir ao cinema
enquanto o outro está no computador tentando terminar um artigo. Mas
esse não é o caso. Seria muito chato.
Não
sendo esse o caso, aconselho-o a se conformar. Ofereço-lhe, como
consolo, um aforismo de Nietzsche: “O preço da fertilidade é ser
rico em oposições internas. A gente permanece jovem somente
enquanto a alma não se espreguiça e deseja a paz.” Você está
cheio de oposições internas. Se essas oposições lhe tiram a paz,
você deve saber que são elas que o fazem interessante. É delas que
surgem os pensamentos mais bonitos.
Não
sei por que você não continua a ser palhaço e a alegrar as
crianças. E por que não fazer isso na universidade? Você tem
vergonha? Roupa de palhaço não combina com beca acadêmica?
Quanto
às suas habilidades de fazedor de cachorro-quente, acho melhor
cuidar delas com cuidado, em particular. Nunca se sabe o que o futuro
nos reserva. Sei de professores que passaram a ganhar a vida fazendo
suco e vendendo pão.
E
vi que seu personagem cientista está a serviço de um personagem
artista. Você é um cientista de lagos. Para a ciência, lagos são
laboratórios. Muito se pode aprender do seu estudo. Mas você, além
disso, ama os lagos pela sua beleza. Você cuida dos lagos pela
tranquilidade que eles comunicam. Você tem alma de jardineiro.
Aceite
a orgia dos pensionistas com alegria. São poucos os que têm esse
privilégio. Apareça de novo quando quiser.
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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