quarta-feira, 1 de novembro de 2023

A morte de meu pai: Tomada 2



É assim que acontece. O velho dr. Bennett, nosso médico, sai do quarto de hóspedes e fecha delicadamente a porta. Extremamente velho, ele parece uma maçã comida abandonada ao sol. Ele estava lá quando eu nasci, e já era velho então. Minha mãe e eu estamos sentados na sala esperando o que ele tem a dizer. Tirando o estetoscópio dos ouvidos, ele olha desanimado para nós.
Diz dr. Bennett: “Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Se vocês tiverem algum assunto pendente para resolver com Edward, algo para dizer, agora seria o momento...”
E sua voz se transforma num murmúrio até silenciar.
Isso era algo que estávamos esperando, essa observação final. Minha mãe e eu suspiramos. Há ao mesmo tempo tristeza e alívio no modo como a tensão abandona nosso corpo, e nós nos entreolhamos, dividindo aquele olhar, aquele olhar que só acontece uma vez na vida. Estou um tanto surpreso de que o dia tenha finalmente chegado, pois embora o dr. Bennett tivesse dado um ano de vida a meu pai há cerca de um ano, ele está morrendo há tanto tempo que de certa forma eu esperava que ficasse morrendo para sempre.
Talvez eu deva entrar primeiro — ela diz. Parece derrotada, exausta, seu sorriso sem vida e de alguma forma sereno. — A menos que você queira ir.
Não — digo. — Você vai e depois...
Se acontecer alguma coisa...
Tudo bem — respondo. — Você me avisa.
Ela respira fundo, levanta-se, e entra no quarto dele como uma sonâmbula, deixando a porta aberta atrás de si. O dr. Bennett, um tanto curvado como se seus ossos tivessem fundido por causa da velhice, fica parado no meio da sala, com ar de espanto e tristeza diante dos poderes da vida e da morte. Após alguns minutos minha mãe volta, enxuga uma lágrima do rosto, e dá um abraço no dr. Bennett. Ele a conhece há mais tempo do que eu, penso. Ela também é velha, mas perto dele parece eternamente jovem. Parece uma jovem prestes a se tornar viúva.
William — ela diz.
E então eu entro. O quarto está na penumbra, o tom acinzentado de uma soneca depois do almoço, embora do outro lado das cortinas se possa ver a luz de fora querendo entrar. Este é o quarto de hóspedes. Era aqui que meus amigos ficavam quando passavam a noite em casa, antes de terminarmos a escola, e agora é o quarto onde meu pai está morrendo, está quase morto. Quando entro, ele sorri. Morrendo, ele tem aquele ar que as pessoas moribundas às vezes têm, alegre e triste, cansado e abençoado espiritualmente, tudo ao mesmo tempo. Eu já vi na televisão. Quando o personagem principal morre, ele permanece alegre até o fim, dando conselhos aos entes queridos com uma voz fraca, sendo falsamente otimista acerca de seu prognóstico terminal e, em geral, fazendo as pessoas chorar porque está lidando tão bem com a situação. Mas é diferente com meu pai. Ele não está alegre e não tem falsas esperanças. De fato, ele gosta de dizer: “Por que eu ainda estou vivo? Sinto que já devia ter morrido há muito tempo.”
E dá mesmo esta impressão. Seu corpo que mal passou da meia-idade parece ter sido retirado da cova e ressuscitado para uma nova tentativa, e embora ele nunca tenha tido muito cabelo — ele era craque em disfarçar a calvície —, o pouco cabelo que tinha caiu, e sua pele tem um tom esquisito de branco, de modo que quando olho para ele a palavra que me vem à mente é coalhado.
Meu pai coalhou.
Sabe — ele me disse naquele dia. — Sabe de que eu gostaria?
De quê, papai?
De um copo d’água — ele diz. — Um copo d’água seria realmente bem-vindo agora.
Pode deixar — respondo, e levo um copo d’água, que ele ergue aos lábios com mãos trêmulas, deixando escorrer um pouco pelo queixo e olhando para mim com aqueles olhos como que para dizer que poderia ter vivido uma vida longa, ou mais longa, pelo menos, do que vai viver, sem que eu precisasse vê-lo deixar escorrer água pelo queixo.
Desculpe-me — ele diz.
Não se preocupe. Você só derramou um pouco.
Não me refiro a isso — ele diz, e me lança um olhar atormentado.

Bem, desculpas aceitas — respondo. — Mas sabe de uma coisa, você enfrentou tudo isso com muita coragem. Mamãe e eu estamos realmente orgulhosos.
Ele não faz nenhum comentário, porque embora esteja morrendo ainda é meu pai, e não gosta que eu fale com ele como se ele fosse um garoto. No ano que passou nós trocamos de lugar; eu me tornei o pai, e ele o filho doente, cujo comportamento sob estas circunstâncias muito difíceis deve ser valorizado.
Ah, rapaz — ele diz cansado, como se tivesse levado uma pancada na cabeça. — Do que estávamos falando?
De água — eu falo, e ele concorda com a cabeça, lembrando, e toma outro gole.
Então sorri.
O que é tão engraçado?
Eu só estava pensando — ele diz — que vou sair deste quarto de hóspedes bem a tempo para os hóspedes.
Ele ri, ou faz o que passa por uma risada atualmente, que é um chiado ofegante. Foi ele que decidiu mudar-se para o quarto de hóspedes algum tempo atrás. Embora quisesse morrer em casa, perto de nós, não quis morrer no quarto que ele e mamãe tinham compartilhado nas últimas décadas, porque achava que isso poderia arruinar as coisas para ela no futuro. Morrer e sair do quarto de hóspedes a tempo de ele ser usado por um parente de fora que viesse para seu enterro é uma piada que ele já repetiu umas dez vezes nas últimas semanas, e cada vez que a repete é como se ela acabasse de lhe ocorrer. O que é verdade, eu acho. Ele sempre a diz com o mesmo tom de novidade e eu não posso deixar de sorrir.
Estamos aqui, então, com sorrisos no rosto como um par de idiotas. O que se diz agora, que pendências podem ser resolvidas nos últimos minutos do último dia que irá marcar o antes e o depois da sua vida, do dia que irá mudar tudo para os dois, o vivo e o morto? São três e dez da tarde. Lá fora é verão. Esta manhã eu tinha planejado ir a um cinema de noite com um amigo que tinha vindo da faculdade passar uns dias em casa. Minha mãe está fazendo um ensopado de berinjela para o jantar. Ela já arrumou os ingredientes na bancada da cozinha. Antes do dr. Bennett dar a notícia, eu tinha decidido dar um mergulho na piscina, onde, até recentemente, meu pai praticamente morava, já que nadar era o único exercício que ele conseguia fazer. A piscina fica bem em frente à janela do quarto de hóspedes. Minha mãe acha que ele às vezes não consegue dormir quando estou nadando, mas gosta de me ouvir nadar. Ele diz que o barulho o faz sentir-se um pouco molhado também.
Aos poucos, nossos sorrisos idiotas somem do rosto e ficamos simplesmente olhando um para o outro.
Ei — meu pai diz. — Vou sentir saudades de você.
E eu de você.
É mesmo? — ele diz.
É claro, papai. Sou eu que...
Vai estar aqui — ele diz. — Então parece que você é que vai sentir saudades.
Você — eu digo, como se uma força interior me fizesse dizer aquelas palavras —, você acredita...
Eu paro. Existe uma regra implícita em minha família de que é melhor não conversar sobre religião e política com meu pai. Quando o assunto é religião, ele se recusa a comentar, e quando é política ele não para de falar. A verdade é que é difícil conversar com ele sobre quase tudo. Estou me referindo à essência das coisas, às coisas importantes, aquelas que realmente importam. De alguma forma, isso é difícil demais para ele, e talvez um tanto arriscado, uma obrigação para este homem muito inteligente que esqueceu mais fatos sobre geografia, matemática e história do que eu jamais soube (ele sabia as capitais dos cinquenta estados americanos, e onde você chegaria se voasse para leste a partir de Nova York). Assim, escolho minhas palavras o mais que posso. Mas às vezes escapam algumas palavras indelicadas.
Acredito em quê? — ele me pergunta, fitando-me com aqueles olhos, aqueles olhinhos azuis, acuando-me ali. Então eu digo.
No Céu — digo.
Se eu acredito no Céu?
E em Deus, e tudo o mais — digo porque não sei. Não sei se ele acredita em Deus, ou na vida após a morte ou na possibilidade de todos nós voltarmos como outra pessoa ou outra coisa. Também não sei se ele acredita no Inferno, ou em anjos, ou nos Campos Elísios ou no Monstro do Lago Ness. Nunca conversamos sobre esses assuntos quando ele estava bom, e desde que ficou doente só conversamos sobre remédios, esportes que ele não consegue mais acompanhar porque adormece assim que alguém liga a TV e sobre formas de suportar a dor. Tenho esperança de que ele ignore o assunto agora. Mas de repente seus olhos ficam mais abertos e parecem clarear, como se ele fosse invadido pela possibilidade do que o aguarda depois da morte. Outra além de um quarto de hóspedes vazio. Como se esta fosse a primeira vez que o pensamento lhe tivesse ocorrido.
Que pergunta — ele diz, com uma voz forte. — Não sei se posso dizer que acredito ou que não acredito. Mas isso me faz lembrar, e me interrompa se já tiver ouvido antes, do dia em que Jesus estava guardando os portões para São Pedro. Bem, Jesus está dando uma mãozinha para ele quando um homem vem arrastando os pés pelo caminho do Céu.
“‘O que foi que você fez para entrar no Reino do Céu?’ Jesus pergunta a ele.
E o homem diz: ‘Bem, não muito na verdade. Sou apenas um pobre carpinteiro que levou uma vida sossegada. A única coisa notável da minha vida foi meu filho.’
“‘Seu filho?’ Jesus diz, interessando-se.
“‘Sim, ele foi um filho incrível,’ o homem diz. ‘Teve um nascimento inteiramente fora do comum e mais tarde sofreu uma grande transformação. Também tornou-se muito conhecido em todo o mundo e é amado por muitos até hoje.’
Cristo olha para o homem, dá um abraço apertado nele e diz: ‘Pai, Pai!’
E o velho o abraça de volta e diz: ‘Pinóquio?’”
Ele chia, eu sorrio, sacudindo a cabeça.
Já sabia — digo.
Você devia ter falado — ele retrucou, claramente exausto depois da história. — Quantos fôlegos me restam? Você não quer que eu os desperdice em piadas requentadas, quer?
Só que você não aprendeu nenhuma nova ultimamente. Aliás, esta faz parte da coletânea das melhores. Coletânea de piadas de Edward Bloom. Elas são engraçadas, papai, não se preocupe. Mas você não respondeu à minha pergunta.
Que pergunta?
Não sei se rio ou se choro. Ele passou a vida toda como uma tartaruga, dentro de uma carapaça emocional que fornece a defesa perfeita: não há absolutamente nenhuma entrada. Minha esperança é que nestes últimos momentos ele me mostre o lado terno e vulnerável de seu ser, mas isso ainda não está acontecendo, e sou um tolo de pensar que irá acontecer. Foi sempre assim, desde o começo: toda vez que chegamos perto de algo importante, sério ou delicado, ele conta uma piada. Nunca existe um sim ou um não, o que você acha, na minha opinião este é o sentido da vida.
Por que você acha que isso acontece? — digo alto, como se ele pudesse ler meus pensamentos.
E de algum modo ele pode.
Nunca me senti à vontade para falar sobre essas coisas. — Ele se mexe desconfortavelmente sob os lençóis. — Quem pode saber com certeza? Não existem provas. Então um dia eu acho que sim, no outro acho que não. E outros dias eu fico em cima do muro. Existe um Deus? Tem dias que acredito que sim, outros dias não tenho certeza. Sob essas circunstâncias nada ideais, uma boa piada às vezes parece mais apropriada. Pelo menos você pode rir.
Mas uma piada é engraçada por um ou dois minutos e só. Você fica de mãos vazias. Mesmo que você mudasse de ideia a cada dois dias, eu preferiria, eu gostaria que você tivesse dividido algumas dessas coisas comigo. Até as suas dúvidas teriam sido melhores do que uma série infindável de piadas.
Você tem razão — ele diz, fazendo força com a cabeça no travesseiro e olhando para o teto, como se não conseguisse acreditar que eu tinha escolhido logo aquele momento para lhe dar tal incumbência. É uma carga, e eu a vejo pesando sobre ele, fazendo a vida esvair-se dele, e não posso acreditar que eu tenha feito isso, tenha dito o que disse.
Ainda assim — ele diz — se eu dividisse minhas dúvidas com você, sobre Deus e amor e vida e morte, isso era tudo o que você teria: um monte de dúvidas. Mas agora, veja só, você tem todas essas ótimas piadas.
Nem todas são ótimas — respondo.
O ar condicionado zumbe, enfunando as persianas. A luz entra pelas venezianas, grãos de poeira flutuando. O quarto tem um leve mau cheiro, ao qual achei que iria me acostumar, mas não me acostumei. Sempre me causa náuseas e sinto agora um forte enjoo chegando. É o cheiro ou então o choque de ter aprendido mais sobre o meu pai nos últimos segundos do que na vida inteira que os precedeu.
Ele fecha os olhos e eu fico assustado, meu coração dá um salto, e acho melhor ir chamar mamãe, mas quando me mexo ele agarra minha mão.
Eu fui um bom pai — ele diz.
Uma afirmação sujeita a contestação que ele deixa ali pairando, como que para minha avaliação. Eu o analiso e analiso a afirmação.
Você é um bom pai.
Obrigado. — Suas pálpebras tremem, como se ele tivesse ouvido o que veio ouvir. Este é o sentido das últimas palavras: elas são a chave para abrir a outra vida. Não são últimas palavras e sim senhas, mas assim que são ditas você pode partir.
Então. Como vai ser hoje, papai?
Como vai ser o quê? — ele diz, de modo sonhador.
Deus e Céu e tudo isso. O que você acha: sim ou não? Talvez amanhã você pense de forma diferente, eu entendo isso. Mas agora, neste momento, o que você está sentindo? Quero realmente saber, papai. Papai? — digo isso porque ele parece estar entrando num sono profundo. — Papai? — repito.
Ele abre os olhos e olha para mim com seus olhos azuis subitamente ansiosos e diz, diz para mim, diz para o filho que está sentado ao lado da cama dele o vendo morrer, diz: “Pinóquio?”

Daniel Wallace, in Peixe Grande

Nenhum comentário:

Postar um comentário