sexta-feira, 3 de novembro de 2023

A garota do aniversário


Nem é preciso dizer que Penélope não chegou a ir ao festival de artes; não foi a um ensaio sequer, nem passeou pela cidade de telhas verde-água. Ela ficou na estação de Westbahnhof, na plataforma, sentada na mala, cotovelos apoiados nos joelhos. Com os dedos limpos e ressecados, ela brincou com os botões do vestido de lã azul. Havia trocado sua passagem de volta por outra, para retornar o quanto antes para casa.
Horas depois, quando o trem que a levaria embora dali estava pronto para partir, ela deu um pulo. Um condutor, barba por fazer, acima do peso, despontou de um vagão.
Kommst einer?
Penélope apenas olhou para ele, tomada pela indecisão, girando um botão na altura do peito. A mala estava diante dela. Uma âncora aos seus pés.
Nah, kommst du jetzt, oder net?!
Havia algo de encantador no desleixo do condutor.
Você vem ou não vem?
Até os dentes dele eram tortos. Ele se inclinava para a plataforma de um jeito quase infantil, como um colegial, e em vez de soprar o apito apenas gritou para a frente do trem.
Geht schon!
E sorriu.
Abriu um sorriso que era mais uma confusão de dentes, e nesse momento Penélope estendeu a mão direita, com o botão na palma.

***

Como o pai dela havia previsto, contudo, a viagem correu bem.
Ela era apenas uma maleta e vulnerabilidade, mas, exatamente como Waldek planejara, conseguiu.
Havia um acampamento em um lugar chamado Traiskirchen, que não passava de um exército de beliches e um banheiro de piso vinoso. O primeiro problema foi encontrar o fim da fila. Por sorte Penélope tinha muita prática; se havia uma coisa que a Europa Oriental lhe ensinara era a ficar na fila. O segundo problema, uma vez lá dentro, foi andar pelo mar de recusas em que ela afundou até o tornozelo. Um mar ruidoso e tanto, um teste de nervos e resistência.
As pessoas da fila estavam cansadas e apáticas, e cada uma tinha os próprios medos, embora compartilhassem o maior deles. Não poderiam, sob circunstância alguma, ser enviadas de volta para casa.
Quando chegou a vez dela, foi interrogada.
Tiraram suas impressões digitais, traduziram o que ela disse.
A Áustria era essencialmente um local de retenção, e na maioria dos casos levava vinte e quatro horas para a pessoa ser analisada e enviada para um albergue, onde aguardaria a aprovação de outra embaixada.
O pai de Penélope havia pensado nos mínimos detalhes; só não lhe ocorreu que sexta-feira seria um dia ruim para chegar. Ela teria que resistir a um fim de semana no acampamento — que não era lá um mar de rosas —, mas resistiu. Afinal, em suas próprias palavras, tampouco era o inferno na Terra. Nada comparado ao que outras pessoas enfrentaram. O pior era não saber.

***

Na semana seguinte, ela pegou outro trem, daquela vez para as montanhas, para outro conjunto de beliches, e começou o processo de espera.
Imagino que, depois de nove meses, fosse possível se familiarizar com aquele lugar, mas o que sei de fato sobre aquele período? O que Clay sabia? Ao que parece, a vida nas montanhas era um dos poucos períodos sobre o qual ela não comentava muito — mas quando o fazia, falava com simplicidade e beleza, e o que podemos chamar de luto. Nas palavras dela para Clay:
Houve um breve telefonema, e uma canção antiga.
Pequenas partes para contar o todo.

***

Nos primeiros dias, ela reparou que pessoas faziam ligações de uma antiga cabine telefônica na beira da estrada. Era um corpo estranho na vastidão da floresta e do céu.
Dava para ver que estavam ligando para casa: ficavam de olhos marejados e volta e meia sofriam para sair da cabine depois que desligavam.
Penélope, como muitos outros, hesitou.
Avaliou se era seguro.
Os boatos de escutas do governo eram o bastante para deixar as pessoas nervosas. Como já falei, os que ficavam é que eram punidos.
O que muitos ali tinham a seu favor era o fato de estarem viajando por períodos supostamente longos. Então por que não ligariam para casa após algumas semanas fora? Para Penélope, não era tão simples: ela já deveria ter voltado. Será que um telefonema colocaria seu pai em perigo? Por sorte, enrolou tanto tempo que um homem chamado Tadek esbarrou nela. Ele tinha uma voz e um corpo, era como uma das árvores que cercavam o lugar.
Quer ligar pra casa, mocinha? — Diante da relutância de Penélope em falar, Tadek encostou no vidro para mostrar que a cabine telefônica não mordia. — Tem alguém da sua família no movimento? — E então, foi mais específico: — Solidarność?
Nie.
Você já mexeu com quem não devia? — Ela balançou a cabeça. — Foi o que pensei. — Ele sorriu, como se tivesse pegado emprestado os dentes do condutor de trem austríaco. — Então, se me permite a pergunta, são seus pais?
Meu pai.
E tem certeza de que não causou nenhum problema?
Tenho.
E ele?
É só um velho condutor de bonde, mal abre a boca.
Ah, muito que bem, então acho que não tem problema. O Partido está passando por maus bocados. Acho que estão sem tempo pra se preocupar com um velho condutor de Tramwaj. Difícil ter alguma certeza hoje em dia, mas disso estou certo.
Foi então que, segundo ela, Tadek olhou pelos pinheiros e corredores de luz e perguntou:
Ele foi um bom pai pra você?
Tak.
E ficaria feliz de receber notícias?
Tak.
Bom, então tome aqui. — Ele se virou para ela e jogou alguns trocados. — Diga oi por mim.
E saiu andando.

***

Na conversa telefônica, houve dez breves palavras, traduzidas como:
Alô?
Nada. Ele repetiu.
Aquela voz, feito cimento, feito pedra.
Somente um ruído.
Alô?
Ela estava perdida em uma encosta de montanha cheia de pinheiros, os punhos brancos de tão apertados.
Rainha dos Erros? Rainha dos Erros, é você?
Então ela o imaginou na cozinha, e a estante com trinta e nove livros; encostou a cabeça na vidraça da cabine, como se dissesse “Sim”.
Então desligou com cuidado.
As montanhas ao redor sumiram.

***

Agora vamos à música, poucos meses depois, à noite, na pensão.
A lua contra o vidro.
A data era o aniversário do pai dela.
Na Europa Oriental, davam mais importância à celebração do onomástico, mas no exterior as coisas ganhavam outra dimensão. Ela deixou escapar isso para uma das mulheres.
Não tinham wódka, mas sempre havia schnapps de sobra, e surgiu uma bandeja com taças. Assim que foram distribuídas, o dono da bebida ergueu a sua, propôs um brinde e olhou para Penélope, no salão. Meia dúzia de pessoas estava reunida, e quando ela ouviu as palavras em seu idioma, “A seu pai”, levantou o rosto e sorriu, tentando aguentar firme. Nesse momento, outro homem se levantou. Claro que era Tadek, que começou um canto de beleza e dor:

Sto lat, sto lat,
niech żyje, żyje nam.
Sto lat, sto lat,
niech żyje, żyje nam…

Ela não se conteve.
Desde os primeiros dias, do telefonema, estava tudo guardado, e Penélope não conseguiu segurar mais. Ela se levantou e cantou, mas algo dentro de si se rompeu. Ela entoou a canção de seu país que falava sobre acaso e companheirismo, enquanto se perguntava como podia ter deixado o pai. As palavras vinham em ondas de amor e autodesprezo, e, quando acabou, muitos ali choravam. Não sabiam se veriam suas famílias de novo; deveriam se sentir gratos ou condenados? A única certeza definitiva era de que isso estava fora da alçada deles. Tinha começado e precisava terminar.
A propósito, estes são os primeiros versos da canção:
Cem anos, cem anos,
Que você viva cem anos.
Enquanto cantava, ela sabia que ele não viveria.
Ela nunca mais o veria.

***

Para Penélope, era difícil não reviver sempre aquele sentimento, não deixar que ele tomasse conta durante o tempo que lhe restava naquele lugar — ainda mais levando uma vida tão cômoda.
Todos a tratavam muito bem.
Gostavam dela — de sua tranquilidade, daquela insegurança polida —, e passaram a chamá-la de Garota do Aniversário; geralmente pelas costas, quase nunca na sua frente. De quando em quando, sobretudo os homens, diziam na lata, em diversas línguas, quando ela fazia faxina, ou lavava roupa, ou amarrava o cadarço de uma criança.
Dzięki, Jubilatko.”
Vielen Dank, Geburtstagskind.”
Děkuji, Oslavenkyně...”
Obrigado, Garota do Aniversário.
Um sorriso precisava desbravar o caminho até seu rosto.

***

Enquanto isso, tudo que lhe restava eram a espera e as lembranças do pai. Às vezes, parecia que ela sobrevivia movida por certo rancor, mas isso em seus momentos mais depressivos, quando a chuva desabava das montanhas.
Em dias assim, ela trabalhava com mais vigor e por mais tempo.
Cozinhava e limpava.
Lavava a louça e trocava a roupa de cama.
No fim, foram nove meses de esperança culpada e nenhum piano, até que por fim um país a aceitou. Ela se sentou na beirada do beliche, envelope em mãos. Seu olhar se perdeu pela vidraça branca e embaçada da janela.
Mesmo agora, não consigo deixar de visualizá-la nesse lugar, nos Alpes que volta e meia imagino. Consigo invocar a imagem dela na época, ou como Clay uma vez a descreveu:
A futura Penny Dunbar, entrando em mais uma fila, para voar para longe, para o sul e, de certa forma, direto para o sol.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário