quinta-feira, 2 de novembro de 2023

4 | Capítulo nada desnecessário para o viajante

Conclusão definitiva: será verdade que “o francês não tem bom senso”?

Pois é, como é que o francês não terá bom senso? — interrogava-me ao observar os novos passageiros, quatro franceses que acabavam de entrar na nossa carruagem. Eram os primeiros franceses que eu encontrava na sua própria terra, se não contarmos os alfandegários em Arcelin, donde partíramos havia pouco. O pessoal aduaneiro tinha sido muito simpático, tinha despachado rapidamente o que era preciso despachar, e eu regressara à carruagem muito satisfeito com o meu primeiro passo em França. Antes de Arcelin, no nosso compartimento de oito lugares, só estávamos dois na altura, eu e um senhor suíço, homem simples e modesto, de meia-idade, um interlocutor amabilíssimo com quem conversei duas horas sem parar. Agora éramos seis e, para minha surpresa, com a entrada dos nossos novos companheiros de viagem, o suíço tornou-se de repente muito taciturno. Tentei continuar a conversa com ele, mas ele, visivelmente, apressou-se a dá-la por finda, respondendo-me com secura evasiva, quase com repulsa; virou-se para a janela e pôs-se a contemplar a paisagem; não tardou a pegar no seu guia alemão e a mergulhar nele. Deixei-o em paz e centrei a atenção nos meus novos companheiros de viagem. Era gente um pouco estranha. Sem bagagem, sem uma trouxa sequer, um pacote, sem estarem vestidos de maneira a que minimamente os identificássemos como viajantes. Nem pareciam viajantes. Todos envergavam sobrecasacas ligeiras, muito gastas, coçadas, pouco melhores do que as que usam entre nós os impedidos dos oficiais ou os servos domésticos dos proprietários rurais médios. Camisas sujas, gravatas de cores berrantes e também bastante sujas; um deles tinha no pescoço uns restos de lenço de seda, daqueles lenços que nunca se tiram e acabam por se impregnar de uma libra de gordura depois de quinze anos de contacto permanente com o pescoço do seu portador. O mesmo portador tinha ainda botões de punho com diamantes falsos do tamanho de avelãs. Por outro lado, tinham todos um certo chique, um ar donairoso. Pareciam os quatro da mesma idade, talvez dos seus trinta e cinco anos, e, embora de fisionomias muito diferentes, eram contudo muito parecidos: as caras gastas, as formais barbichas francesas, todas elas talhadas de maneira bastante semelhante. Via-se logo que era gente que passou por tudo e para todo o sempre adotou uma expressão azeda mas extremamente prática. Pareceu-me também que todos se conheciam, mas não tenho lembrança de que tenham trocado entre eles uma palavra sequer. Para mim e para o suíço não queriam olhar, e assobiavam com indiferença, acomodavam-se ao lugar com indiferença, olhavam pela janela da carruagem com a mesma indiferença persistente. Acendi um cigarro e, por não ter mais nada que fazer, comecei a observá-los. Veio-me à cabeça a pergunta: afinal, que gente é esta? Trabalhadores não eram, bourgeois também não. Seriam militares na reserva, uns quaisquer demi-solde ou coisa do gênero? Aliás, não me preocupava muito com eles. Uns dez minutos depois, chegados à estação seguinte, todos os quatro, um após outro, saltaram do comboio, a porta fechou-se e arrancamos. Neste percurso, o comboio não demora quase nada nas estações: dois ou três minutos e logo se põe a andar, e bem, velozmente.
Mal ficamos sozinhos, o suíço fechou o seu guia, pô-lo de lado e olhou para mim com satisfação e evidente desejo de continuar a conversa.
Aqueles senhores não fizeram uma viagem lá muito grande — comecei, olhando para ele com curiosidade.
Porque já estava previsto fazerem só de estação a estação.
Conhece-os?
Conheço-os?... Mas são polícias...
Como? Que gênero de polícias? — perguntei, espantado.
Pois é... eu vi logo que o senhor não ia desconfiar.
Acha... que são espiões? (Custava-me ainda a acreditar.)
São, e estiveram aqui por causa de nós.
Tem a certeza?
Oh, absoluta! Já passei por aqui várias vezes. Indicaram-nos a eles logo na alfândega, quando viam os nossos passaportes, comunicaram-lhes os nossos nomes, etc. A seguir, eles entraram no comboio para nos seguirem.
Mas para que precisavam eles de nos seguir se já nos tinham visto? O senhor não acaba de dizer que lhes deram os nossos dados na estação anterior?
Deram, e os nossos nomes. Mas não era suficiente. Agora, puderam observar-nos em pormenor: a cara, a roupa, o saco de viagem, enfim, todos os pormenores do nosso aspeto. Repararam de certeza nos seus botões de punho. O senhor sacou da cigarreira, então pode ter a certeza de que notaram também a cigarreira, com todas as minúcias, sabe como é, com o máximo de particularidades, todas as particularidades. É que o senhor, em Paris, poderia desaparecer, mudar de nome (isto é, se fosse suspeito). Pois bem, todos esses pormenores podem ser úteis à instrução. Tudo isso, desde os primeiros dados logo naquela estação, são comunicados por telégrafo para Paris. E, em Paris, é tudo guardado nos arquivos para o que der e vier. Além disso, todos os hoteleiros têm de comunicar à polícia todos os dados sobre os hóspedes estrangeiros, também em pormenor.
Mas tantos porquê, logo quatro? — perguntei, ainda um pouco perplexo.
Oh, eles têm-nos cá em grandíssimo número. Pelos vistos, desta vez há poucos estrangeiros, se houvesse mais eles distribuíam-se pelas carruagens.
Mas, por amor de Deus, eles nem sequer olharam para nós. Estavam sempre a olhar para a janela.
Não se preocupe, viram tudo... Foi por causa de nós que eles entraram.
Ora, ora — pensei —, e ainda dizem que “o francês não tem bom senso” — e (confesso-o com vergonha) olhei com desconfiança para o suíço: “E tu, meu amigo, não serás da mesma comandita? Não estarás agora a fazer teatro?” — passou-me pela cabeça, mas só por um instante, acreditai. É absurdo, mas nada a fazer: estão sempre a passar-nos pela cabeça, involuntariamente, certas coisas...
O suíço não estava a enganar-me. No hotel onde me hospedei registaram de imediato todos os meus dados, até aos mínimos sinais particulares, e comunicaram-nos para quem de direito. Pela prontidão e minúcia com que nos observam para a descrição dos sinais particulares pode concluir-se que também toda a nossa vida posterior no hotel, todos os nossos passos, por assim dizer, serão registados escrupulosamente. No entanto, desta minha primeira vez, a mim, pessoalmente, não incomodaram muito e fizeram o meu registo discretamente, não deixando porém de me fazer as perguntas habituais que constam do livro de hóspedes: quem é, como é, donde vem, com que fim, etc. No segundo hotel em que tive de me hospedar por já não ter encontrado vaga no meu anterior Hôtel Coquillière, após a minha ausência de oito dias por ter ido a Londres, trataram-me com mais franqueza. Este segundo hotel, o Hôtel des Empéreurs, tinha um aspeto mais patriarcal, em todos os sentidos. O dono e a dona eram de facto pessoas muito boas e extremamente delicadas; tratava-se de um casal já idoso, incrivelmente atento aos seus hóspedes. No próprio dia da minha instalação no hotel, à noite, a hoteleira apanhou-me no átrio e pediu-me para ir ao escritório. O marido também lá estava, mas a mulher, pelos vistos, era quem punha e dispunha no negócio.
Desculpe — começou ela, muito educada —, precisamos dos seus sinais particulares.
Mas já os dei... têm o meu passaporte.
Sim, mas... votre état?
Este “votre état” é uma coisa bastante confusa e nunca me agradou. O que poderia escrever? Viajante? — é demasiado abstrato. Homme de lettres? — não me teriam qualquer respeito.
Vamos escrever “propriétaire”, o que acha? — propôs a hoteleira. — Será melhor.
Oh, sim, será o melhor — apoiou o marido.
Está escrito. Agora: qual o objetivo da sua vinda a Paris?
Como viajante, de passagem.
Humm, pois, pour voir Paris. Desculpe, monsieur, a sua estatura?
Estatura como?
Que altura tem?
É como vê, média.
Com certeza que é média, monsieur... Mas é desejável saber-se com mais precisão... Acho, acho... — continuava ela, duvidando e aconselhando-se, com os olhos, com o marido.
Acho que tantos centímetros — decidiu o marido, determinando a olho a minha altura.
Mas para que precisam disso? — perguntei.
Oh, é ne-ces-sário — respondeu a hoteleira, esticando amavelmente a palavra “necessário” e apontando a minha altura no livro. — Agora, monsieur, cabelo? Loiro, humm... bastante claro... liso...
Apontou também as características do meu cabelo.
Se me permite, monsieur — continuou, largando a pena, levantando-se da cadeira e aproximando-se de mim com um ar muito amável —, ponha-se aqui, dê só dois passos, mais perto da janela. Tenho de ver a cor dos seus olhos. Humm, claros...
E de novo, com o olhar, pediu o conselho do marido. Pelos vistos, amavam-se muito.
Mais para o acinzentado — observou o marido. — Voilà. — Piscou o olho à mulher, apontando para qualquer coisa acima do seu sobrolho, mas percebi muito bem o que ele tinha em mente: é que tenho uma pequena cicatriz na testa, e o homem queria que a mulher apontasse também este meu sinal particular.
Permita-me agora uma pergunta — disse eu à hoteleira quando o exame acabou —, será que vos exigem toda essa informação?
Oh, monsieur, é mesmo ne-ces-sária!...
Monsieur! — apoiou-a o marido com um ar muitíssimo grave.
Mas no Hôtel Coquillière não me interrogaram sequer.
Não pode ser — disse a hoteleira com vivacidade. — Eles podem ser responsabilizados por isso. Ou então observaram-no sem dizerem nada, mas de certeza que observaram. Ora, nós aqui somos mais simples e sinceros com os nossos hóspedes, acolhemo-los aqui como em família. O senhor vai ficar satisfeito conosco. Vai ver...
Oh, monsieur!... — confirmou o marido solenemente, e até se lhe pintou uma certa ternura na cara.
Sim, era um casal honestíssimo e amabilíssimo, pelo menos nas minhas relações ulteriores com eles. Mas a palavra “ne-ces-sá-rio” não era dita em tom de desculpa ou de carinho, mas no sentido literal de necessidade e quase em conformidade com as suas convicções.
Estou, pois, em Paris…

Dostoiévski, in A Submissa e Outras Histórias

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