segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Trêmulo e casto


[…]
Não há como descrever o horror daquela escuridão nos buracos do teto, o halo marrom da noite da cidade perdido em uma elevação vegetal verde acima das Rodas dos telhados Blakeanos de adobe – a Chuva agora embaça o verde sem fim da planície do vale a norte de Actopan. Garotas bonitas passam correndo por cima de sarjetas cheias de poças – Cães latem para carros que passam em bandos – A chuva fraca esvazia-se de maneira lúgubre sobre a pedra úmida da cozinha, e a porta reluz (ferro) toda brilhante e molhada – O cachorro uiva de dor na cama. – O cão é a pequena mãe chihuahua de 30cm de comprimento, com belos pezinhos de dedos negros e unhas, um cachorro tão “refinado” e delicado que você não poderia tocá-lo sem que ele ganisse de dor – “C-aaa-in”. Tudo o que você podia fazer era estalar os dedos com delicadeza para ela e deixar que esfregasse o seu focinhozinho gelado e molhado (negro como o de um touro) contra suas unhas e seu polegar. Cachorrinho doce – Tristessa diz que ela está no cio e é por isso que chora – o galo grita debaixo da cama.
O galo está esse tempo todo escutando debaixo das molas, meditativo, virando-se para olhar para aquela escuridão silenciosa ao redor, o barulho dos humanos dourados acima “BEU-VEU-VAA?”, grita ele, uiva, interrompe meia dúzia de conversas simultâneas e vociferantes como papel rasgado acima – A galinha cacareja.
A galinha está lá fora, circulando por entre nossos pés, ciscando o chão com suavidade – Ela gosta das pessoas. Quer se aproximar de mim e se esfregar sem limites contra a perna da minha calça, mas eu não a encorajo, na verdade, ainda não a havia notado e parece aquele sonho do vasto pai insano do celeiro na floresta na uivante Nova Scotia com as marés prestes a engolir a cidade e toda a região de pinheiros ao redor no norte sem fim – era Tristessa, Cruz na cama, El Indio, o galo, a pomba no alto da cornija (nunca fez um som além do eventual treinamento de bater as asas), o gato, a galinha e a porra da mulher cachorra vadia pretinha vira-lata chihuahua Espana que uiva.
A seringa de El Indio está totalmente cheia. Ele enfia a agulha com força e ela está cega e não penetra na pele e ele a enfia com mais força e consegue, mas em vez de estremecer aguarda boquiaberto e em êxtase e aplica tudo, deprimido, parado. – “Você precisa me fazer um favor, Mr. Gazookus”, diz Old Bull Gaines interrompendo meu pensamento. “Vamos lá na Tristessa comigo – Estou com pouco”, mas estou pronto para desaparecer da Cidade do México, com caminhadas pela chuva, chapinhando nas poças sem reclamar ou mesmo qualquer interesse, apenas tentando chegar em casa, na cama, morto.
É o maldito alucinado livro dos sonhos da droga do mundo, cheio de súplicas, mentiras e acordos escritos. E suborno, para as crianças comprarem doces, para as crianças comprarem doces. “A morfina é para a dor”, sigo pensando, “e o resto é o resto, isso é o que é, eu, eu sou o que sou. Adoração a Tathagata, Sugata, Buda, perfeito na Sabedoria e na Compaixão, que alcançou, está alcançando e irá alcançar, todas essas palavras de mistério.”
O motivo pelo qual eu trago o uísque, para beber, para romper a cortina negra – Ao mesmo tempo um comediante na cidade de noite – incomodado por melancolias e intervalos de calmaria, entediado, bebendo, reverente, entrando em colapso. “Onde eu vou fazer... “ – Puxo a cadeira até o canto perto do pé da cama para poder sentar entre a gata e a Virgem Maria. A gata, la gata em espanhol, a pequena Tathagata da noite, de cor dourada e rosada, três semanas de idade, um focinho rosado maluco, um rosto maluco, olhos verdes, bigodes em fórceps e suíças douradas de leão – Passo meus dedos por seu crânio pequeno e ela levanta-se, ronrona e a máquina de ronronar passa um tempo ligada, e ela olha ao redor do quarto e vê satisfeita o que todos estamos fazendo. – “Ela está com pensamentos de ouro”, penso eu. – Tristessa gosta de ovos, ou não deixaria um galo macho neste ambiente feminino? Como eu posso saber como são feitos os ovos? A minha direita, as velas devocionais queimam diante da parede de barro.

É infinitamente pior do que o sonho de sono que tive na Cidade do México no qual passo por apartamentos brancos vazios e tristes, sozinho, ou um em que os degraus de mármore de um hotel me aterrorizam É a noite chuvosa na Cidade do México e estou no meio do bairro do Mercado dos Ladrões do México e El Indio é um ladrão bem conhecido e mesmo Tristessa era uma batedora de carteiras mas eu não faço mais que passar de leve as costas da mão contra o volume de meu dinheiro dobrado guardado à maneira dos marinheiros no bolso da frente de ferroviário de meus jeans – E no bolso da camisa guardo os cheques de viagem que são, de certa forma, impossíveis de roubar – Aquela, Ah, aquela rua lateral onde a gangue de mexicanos me para e vasculha minha bolsa de viagem. Eles pegam o que querem e me levam para tomar uma bebida – É melancolia de maneira imprevisível nesta terra, percebo todas as incontáveis manifestações os inventos da mente-pensante que erguem uma parede de horror diante de sua conscientização pura de que não há parede ou horror apenas A Luz Leitora Vazia Transcendental Beijável da verdadeira e perfeitamente vazia Eternidade Duradoura. – Sei que está tudo bem mas quero prova, e os Budas e as Virgens Marias estão ali para me lembrar da minha promessa solene de fé nesta terra agreste e estúpida onde nós vivemos em fúria nossas assim chamadas vidas em um mar de preocupações, carne para as Chicagos dos Túmulos – bem neste minuto meu próprio pai e meu próprio irmão jazem lado a lado na lama no Norte e eu devo ser mais inteligente que eles – ao ser esperto, estou morto. Olho para os outros que estão conversando, eles percebem que estive perdido em pensamentos na minha cadeira no canto, mas estão em busca de preocupações sem fim e irrefreáveis (todas 100% mentais) próprias – Estão falando em espanhol, eu entendo apenas trechos soltos dessa conversa viril – Tristessa diz “chinga” frase sim, frase não, um marinheiro de boca suja – ela diz isso com desprezo e seus dentes rangem o que me deixa preocupado.
Você conhece as mulheres tão bem quanto pensa?” –
O galo está tranquilo e de repente solta um grito.

Tiro minha garrafa de uísque da bolsa e o Canady Dry, abro os dois e me sirvo um drinque numa xícara também faço um para Cruz que acabou de pular da cama para vomitar no chão da cozinha e agora quer outra bebida, ela passou o dia inteiro no bar para mulheres em algum lugar perto do bairro das putas da Panamá Street e a sinistra Rayon Street com seu cachorro morto na sarjeta e mendigos na calçada sem chapéu que olham para você desamparados – Cruz é uma índia pequena sem queixo e com olhos brilhantes. Usa escarpins de salto alto sem meias e vestidos surrados, que turma de gente louca, nos Estados Unidos um tira iria olhar com muita atenção ao vê-las todos loucaços discutindo e cambaleando pela calçada, como aparições de pobreza – Cruz toma um drinque e vomita, também. Ninguém percebe, El Indio está com a seringa em uma mão e um papelote na outra e discute, o pescoço tenso, colérico, em todo o volume com Tristessa, que grita e cujos olhos brilhantes dançam para se livrar daquilo – A velha senhora Cruz geme por causa da confusão e se enterra de volta em sua cama, a única cama, embaixo do cobertor, o rosto oleoso e com uma bandagem, o cachorrinho preto se enroscando contra ela, e a gata, e ela está lamentando algo, sua ressaca, e El Indio insiste em reclamar mais uma parte do suprimento de morfina de Tristessa – eu engulo minha bebida.
Na porta ao lado a mãe fez sua filhinha chorar. Podemos ouvi-la rezar, guinchos curtos com tristeza suficiente para despedaçar o coração de um pai e talvez fosse. – Passam caminhões, ônibus, barulhentos, rosnando, completamente latadas de gente a caminho de Tacuyaba e Rastro e Circunvalación e outras cidadezinhas de periferia – as ruas de poças imundas que terei de caminhar para chegar em casa às 2h da manhã, chapinhando despreocupado pelas poças das ruas, olhando ao longo das cercas solitárias para o reflexo desolador da chuva molhada que reluz sob a iluminação da rua – O abismo e o horror de meu caráter, os músculos tensos do pescoço de Virya que um homem necessita para apertar os dentes um contra o outro, para passar por estradas solitárias de chuva à noite sem esperança de uma cama quente – Minha cabeça se abate e se exaure de pensar nisso. Tristessa diz “Como está Jack?” Ela sempre pergunta: “Por que você está tão triste?? – ‘Muy dolorosa’’’, como se quisesse dizer “Você está com muita dor”, pois dor significa dolor – “Estou triste porque toda a vida es dolorosa”, repito sempre, na esperança de ensinar a ela a Verdade Número Um das Quatro Grandes Verdades – Além disso, o que poderia ser mais verdadeiro? Com seus olhos púrpuros pesados ela pisca para mim a retaliação com um balançar da cabeça, “hã-hã”, uma compreensão de sabedoria indígena do tom do que eu disse, e segue assentindo com a cabeça, deixando-me desconfiado da curva de seu nariz, que parece mau e conivente. Penso nela como uma Voluptuosa Houri Vendedora nas profundezas do inferno que Kshiti-garbha nunca sonhou em redimir. – Quando ela parece um Índio Joe malvado de Huckleberry Finn, tramando minha morte – El Indio, de pé, observando por entre a carne arroxeada, quase negra, em torno dos olhos tristes, duros e afiados, e limpa o rosto, sombrio ouvindo-me dizer que Toda Vida é Triste.
Ele balança a cabeça, concorda, nenhum comentário a fazer para mim ou qualquer pessoa sobre isso.
Tristessa está inclinada sobre a colher onde fervem mais morfina em sua caldeira de fósforo.
Ela parece estranha e mais magra e você vê as curvas escassas de seu traseiro no vestido maluco que parece um quimono quando ela se ajoelha como se estivesse rezando sobre a cama preparando seu pico em cima da cadeira cheia de cinzas, alfinetes de cabelo, algodão, coisas para usar na cara como rímel e batons mexicanos estranhos e cremes e enfeites – entranhas, restos mortais de lixo que, se tivessem sido derrubadas, teriam acrescentado apenas uma pequena quantidade extra de confusão à bagunça do chão. – “Corri para encontrar esse Tarzan”, penso, lembrando da infância e de casa enquanto eles se lamentam no Quarto da Noite de Sábado do México, “mas as moitas e as rochas não eram reais e a beleza das coisas deve estar no fato de terminarem”.

Jack Kerouac, in Tristessa

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