[…]
Não
há como descrever o horror daquela escuridão nos buracos do teto, o
halo marrom da noite da cidade perdido em uma elevação vegetal
verde acima das Rodas dos telhados Blakeanos de adobe – a Chuva
agora embaça o verde sem fim da planície do vale a norte de
Actopan. Garotas bonitas passam correndo por cima de sarjetas cheias
de poças – Cães latem para carros que passam em bandos – A
chuva fraca esvazia-se de maneira lúgubre sobre a pedra úmida da
cozinha, e a porta reluz (ferro) toda brilhante e molhada – O
cachorro uiva de dor na cama. – O cão é a pequena mãe chihuahua
de 30cm de comprimento, com belos pezinhos de dedos negros e unhas,
um cachorro tão “refinado” e delicado que você não poderia
tocá-lo sem que ele ganisse de dor – “C-aaa-in”. Tudo o que
você podia fazer era estalar os dedos com delicadeza para ela e
deixar que esfregasse o seu focinhozinho gelado e molhado (negro como
o de um touro) contra suas unhas e seu polegar. Cachorrinho doce –
Tristessa diz que ela está no cio e é por isso que chora – o galo
grita debaixo da cama.
O
galo está esse tempo todo escutando debaixo das molas, meditativo,
virando-se para olhar para aquela escuridão silenciosa ao redor, o
barulho dos humanos dourados acima “BEU-VEU-VAA?”, grita ele,
uiva, interrompe meia dúzia de conversas simultâneas e vociferantes
como papel rasgado acima – A galinha cacareja.
A
galinha está lá fora, circulando por entre nossos pés, ciscando o
chão com suavidade – Ela gosta das pessoas. Quer se aproximar de
mim e se esfregar sem limites contra a perna da minha calça, mas eu
não a encorajo, na verdade, ainda não a havia notado e parece
aquele sonho do vasto pai insano do celeiro na floresta na uivante
Nova Scotia com as marés prestes a engolir a cidade e toda a região
de pinheiros ao redor no norte sem fim – era Tristessa, Cruz na
cama, El Indio, o galo, a pomba no alto da cornija (nunca fez um som
além do eventual treinamento de bater as asas), o gato, a galinha e
a porra da mulher cachorra vadia pretinha vira-lata chihuahua Espana
que uiva.
A
seringa de El Indio está totalmente cheia. Ele enfia a agulha com
força e ela está cega e não penetra na pele e ele a enfia com mais
força e consegue, mas em vez de estremecer aguarda boquiaberto e em
êxtase e aplica tudo, deprimido, parado. – “Você precisa me
fazer um favor, Mr. Gazookus”, diz Old Bull Gaines interrompendo
meu pensamento. “Vamos lá na Tristessa comigo – Estou com
pouco”, mas estou pronto para desaparecer da Cidade do México, com
caminhadas pela chuva, chapinhando nas poças sem reclamar ou mesmo
qualquer interesse, apenas tentando chegar em casa, na cama, morto.
É
o maldito alucinado livro dos sonhos da droga do mundo, cheio de
súplicas, mentiras e acordos escritos. E suborno, para as crianças
comprarem doces, para as crianças comprarem doces. “A morfina é
para a dor”, sigo pensando, “e o resto é o resto, isso é o que
é, eu, eu sou o que sou. Adoração a Tathagata, Sugata, Buda,
perfeito na Sabedoria e na Compaixão, que alcançou, está
alcançando e irá alcançar, todas essas palavras de mistério.”
– O
motivo pelo qual eu trago o uísque, para beber, para romper a
cortina negra – Ao mesmo tempo um comediante na cidade de noite –
incomodado por melancolias e intervalos de calmaria, entediado,
bebendo, reverente, entrando em colapso. “Onde eu vou fazer... “
– Puxo a cadeira até o canto perto do pé da cama para poder
sentar entre a gata e a Virgem Maria. A gata, la gata em espanhol, a
pequena Tathagata da noite, de cor dourada e rosada, três semanas de
idade, um focinho rosado maluco, um rosto maluco, olhos verdes,
bigodes em fórceps e suíças douradas de leão – Passo meus dedos
por seu crânio pequeno e ela levanta-se, ronrona e a máquina de
ronronar passa um tempo ligada, e ela olha ao redor do quarto e vê
satisfeita o que todos estamos fazendo. – “Ela está com
pensamentos de ouro”, penso eu. – Tristessa gosta de ovos, ou não
deixaria um galo macho neste ambiente feminino? Como eu posso saber
como são feitos os ovos? A minha direita, as velas devocionais
queimam diante da parede de barro.
É
infinitamente
pior
do que o sonho de sono que tive na Cidade do México no qual passo
por apartamentos brancos vazios e tristes, sozinho, ou um em que os
degraus de mármore de um hotel me aterrorizam É a noite chuvosa na
Cidade do México e estou no meio do bairro do Mercado dos Ladrões
do México e El Indio é um ladrão bem conhecido e mesmo Tristessa
era uma batedora de carteiras mas eu não faço mais que passar de
leve as costas da mão contra o volume de meu dinheiro dobrado
guardado à maneira dos marinheiros no bolso da frente de ferroviário
de meus jeans – E no bolso da camisa guardo os cheques de viagem
que são, de certa forma, impossíveis de roubar – Aquela, Ah,
aquela rua lateral onde a gangue de mexicanos me para e vasculha
minha bolsa de viagem. Eles pegam o que querem e me levam para tomar
uma bebida – É melancolia de maneira imprevisível nesta terra,
percebo todas as incontáveis manifestações os inventos da
mente-pensante que erguem uma parede de horror diante de sua
conscientização pura de que não há parede ou horror apenas A Luz
Leitora Vazia Transcendental Beijável da verdadeira e perfeitamente
vazia Eternidade Duradoura. – Sei que está tudo bem mas quero
prova, e os Budas e as Virgens Marias estão ali para me lembrar da
minha promessa solene de fé nesta terra agreste e estúpida onde nós
vivemos em fúria nossas assim chamadas vidas em um mar de
preocupações, carne para as Chicagos dos Túmulos – bem neste
minuto meu próprio pai e meu próprio irmão jazem lado a lado na
lama no Norte e eu devo ser mais inteligente que eles – ao ser
esperto, estou morto. Olho para os outros que estão conversando,
eles percebem que estive perdido em pensamentos na minha cadeira no
canto, mas estão em busca de preocupações sem fim e irrefreáveis
(todas 100% mentais) próprias – Estão falando em espanhol, eu
entendo apenas trechos soltos dessa conversa viril – Tristessa diz
“chinga” frase sim, frase não, um marinheiro de boca suja –
ela diz isso com desprezo e seus dentes rangem o que me deixa
preocupado.
“Você
conhece as mulheres tão bem quanto pensa?” –
O
galo está tranquilo e de repente solta um grito.
Tiro
minha garrafa
de uísque da bolsa e o Canady Dry, abro os dois e me sirvo um
drinque numa xícara também faço um para Cruz que acabou de pular
da cama para vomitar no chão da cozinha e agora quer outra bebida,
ela passou o dia inteiro no bar para mulheres em algum lugar perto do
bairro das putas da Panamá Street e a sinistra Rayon Street com seu
cachorro morto na sarjeta e mendigos na calçada sem chapéu que
olham para você desamparados – Cruz é uma índia pequena sem
queixo e com olhos brilhantes. Usa escarpins de salto alto sem meias
e vestidos surrados, que turma de gente louca, nos Estados Unidos um
tira iria olhar com muita atenção ao vê-las todos loucaços
discutindo e cambaleando pela calçada, como aparições de pobreza –
Cruz toma um drinque e vomita, também. Ninguém percebe, El Indio
está com a seringa em uma mão e um papelote na outra e discute, o
pescoço tenso, colérico, em todo o volume com Tristessa, que grita
e cujos olhos brilhantes dançam para se livrar daquilo – A velha
senhora Cruz geme por causa da confusão e se enterra de volta em sua
cama, a única cama, embaixo do cobertor, o rosto oleoso e com uma
bandagem, o cachorrinho preto se enroscando contra ela, e a gata, e
ela está lamentando algo, sua ressaca, e El Indio insiste em
reclamar mais uma parte do suprimento de morfina de Tristessa – eu
engulo minha bebida.
Na
porta ao lado a mãe fez sua filhinha chorar. Podemos ouvi-la rezar,
guinchos curtos com tristeza suficiente para despedaçar o coração
de um pai e talvez fosse. – Passam caminhões, ônibus,
barulhentos, rosnando, completamente latadas de gente a caminho de
Tacuyaba e Rastro e Circunvalación e outras cidadezinhas de
periferia – as ruas de poças imundas que terei de caminhar para
chegar em casa às 2h da manhã, chapinhando despreocupado pelas
poças das ruas, olhando ao longo das cercas solitárias para o
reflexo desolador da chuva molhada que reluz sob a iluminação da
rua – O abismo e o horror de meu caráter, os músculos tensos do
pescoço de Virya que um homem necessita para apertar os dentes um
contra o outro, para passar por estradas solitárias de chuva à
noite sem esperança de uma cama quente – Minha cabeça se abate e
se exaure de pensar nisso. Tristessa diz “Como está Jack?” Ela
sempre pergunta: “Por que você está tão triste?? – ‘Muy
dolorosa’’’, como se quisesse dizer “Você está com muita
dor”, pois dor significa dolor – “Estou triste porque toda a
vida es dolorosa”, repito sempre, na esperança de ensinar a ela a
Verdade Número Um das Quatro Grandes Verdades – Além disso, o que
poderia ser mais verdadeiro? Com seus olhos púrpuros pesados ela
pisca para mim a retaliação com um balançar da cabeça, “hã-hã”,
uma compreensão de sabedoria indígena do tom do que eu disse, e
segue assentindo com a cabeça, deixando-me desconfiado da curva de
seu nariz, que parece mau e conivente. Penso nela como uma Voluptuosa
Houri Vendedora nas profundezas do inferno que Kshiti-garbha nunca
sonhou em redimir. – Quando ela parece um Índio Joe malvado de
Huckleberry Finn, tramando minha morte – El Indio, de pé,
observando por entre a carne arroxeada, quase negra, em torno dos
olhos tristes, duros e afiados, e limpa o rosto, sombrio ouvindo-me
dizer que Toda Vida é Triste.
Ele
balança a cabeça, concorda, nenhum comentário a fazer para mim ou
qualquer pessoa sobre isso.
Tristessa
está inclinada sobre a colher onde fervem mais morfina em sua
caldeira de fósforo.
Ela
parece estranha e mais magra e você vê as curvas escassas de seu
traseiro no vestido maluco que parece um quimono quando ela se
ajoelha como se estivesse rezando sobre a cama preparando seu pico em
cima da cadeira cheia de cinzas, alfinetes de cabelo, algodão,
coisas para usar na cara como rímel e batons mexicanos estranhos e
cremes e enfeites – entranhas, restos mortais de lixo que, se
tivessem sido derrubadas, teriam acrescentado apenas uma pequena
quantidade extra de confusão à bagunça do chão. – “Corri para
encontrar esse Tarzan”, penso, lembrando da infância e de casa
enquanto eles se lamentam no Quarto da Noite de Sábado do México,
“mas as moitas e as rochas não eram reais e a beleza das coisas
deve estar no fato de terminarem”.
Jack Kerouac, in Tristessa
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