[…]
E
ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina. Naquele primeiro
dia, eu pude conversar outras vezes com Otacília, que, para mim,
hora em mais hora embelezava. Minha alma, que eu tive; e minha ideia
esbarrada. Conheci que Otacília era moça direta e opiniosa, sensata
mas de muita ação. Ela não tinha irmão nem irmã. Sôr Amadeu
chefiava largo: grandes gados em léguas de alqueires. Otacília não
estava nôiva de ninguém. E ia gostar de mim? De moça-de-família
eu pouco entendesse. A ser, a Rosauarda? Assim igual eu Otacília não
queria querer; salvante assente que da Rosa uarda nunca me lembrei
com desprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom já comi.
Sete voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava.
Revirei
meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas.
Poetagem. Mas era o que eu sincero queria ― como em fala de livros,
o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha
assim governa, sem precisão de armas e galopes, guardada macia e
fina em sua casa-grande, sorrindo santinha no alto da alpendrada... E
ela queria saber tudo de mim, mais ainda me perguntava. ― Donde é
mesmo que o senhor é, donde? Se sorria. E eu não medi meus
alforges! fui contando que era filho de Seô Selorico Mendes, dono de
três possosas fazendas, assistindo na São Gregório. E que não
tinha em minhas costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente
por cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo
aqueles jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de
todos estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente
deles.
Fiquei
esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não acreditava? Mas
Otacília mudou para séria a feição do rosto, não queria mais de
minha vida só assim meiamente indagar. Os de todos lindos olhos dela
estavam me assinalando o céu com essas nuvens. Eu tinha renegado
Diadorim, travei o que tive vergonha. Já era para entardecendo.Vindo
na vertente, tinha o quintal, e o mato, com o garrulho de grandes
maracanãs pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o
sol dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas
peças nuvens sem movimento. Mas, da parte do poente, algum vento
suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um
seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas
escuras e águas todas do Urucúia, e nesse céu sertanejo
azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas feito de
ferro quente e sangues. Digo, porque até hoje tenho isso tudo do
momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que,
meu, senhor? Lhe ensino! porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e
por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A
espécie do que senti. O sol entrado.
Daí,
sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do
engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de
lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria
conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores.
Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a
fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo
em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e JoãoVaqueiro não
esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens
da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre
naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos
pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que
sabia?
― Aquilo
é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de
ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu
falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal,
deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a
mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano,
foi, foi, foi...
― que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava
se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada
abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio
pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva.
De repente.
― Riobaldo,
você está gostando dessa moça?
Aí
era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me
procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A
voz dele vinha pelos dentes.
― Não,
Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei,
minha alma obedecia.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo?
Não
respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não
tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má
loucura de tudo aquilo. Tremi não.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava
ajoelhado na beira de mim.
― Se
nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me
diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de
Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz
esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no
momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e
deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar
brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Assisado,
me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci. Eu tinha dó de
Diadorim, eu ia com meu pensamento para Otacília. Me balanceei
assim, adiantado na noite, em tanto gaio, em tanto piongo, com todas
as novas dúvidas e ideias, e esperanças, no claro de uma espertina.
Com muito, me levantei. Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a
lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era da
borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto
de árvores da mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se
sumiam para dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar.
Ao que fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só
olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília
deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençois
lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti
que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim,
fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter
medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro tempo.
Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre
claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água do
rego, com o frio da noite ela corria morna. Tornei a entrar na
rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto, senti a
respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele. Não
fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava.
E, com o vago, devo de ter adormecido ― porque acordei quando
Diadorim no mexe leve se levantou, saíu sem rumor, levando a
capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das barras no
clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.
[…]
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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