Queridos
estadunidenses
Imagino-vos
exaustos.
Tenho
acompanhado as notícias. Vejo-vos atordoados, como pugilistas após
um combate, cansados de defender a punho os vossos pensamentos e
posicionamentos ideológicos, recolhidos no canto do ringue, com a
cabeça a latejar da luta que dura desde o nascimento da América,
pelos cálculos dos indígenas norte-americanos e dos descendentes
dos povos escravizados. Vejo-vos à procura do norte, entre o ruído
de uma multidão de espectadores entusiasmados e outros tantos
agitadores profissionais que só vos conhecem dos filmes e livros.
Vencedores? Diria que não existem, porque à medida que as posições
se extremam, a questão que nos resta fazer é apenas uma: quem
realmente sairá beneficiado desse arranca-rabo entre gringos?
“Win
or bust.” Temos vindo a interiorizar o mantra dos vitoriosos.
Aprendemos que, seja qual for a circunstância, não esperamos nada
menos do que o aplicar do esforço máximo para atingir o objetivo
declarado, tendo o fracasso total como única alternativa. Os empates
são inadmissíveis: ninguém se lembra deles. Não se escrevem
canções, a Netflix não compra os direitos nem se vendem jornais
com empates. Na política, não é diferente. O empate dói mais do
que a derrota porque, ao fim de um par de dias, este desaparecerá da
memória coletiva sem pompa, sem direito a placa comemorativa ou
página na Wikipedia alusiva ao dia em que o bom senso reinou entre
rivais.
Para
quem apostou o seu dinheiro ou o seu carácter, ficar a chuchar no
dedo sem poder gritar vitória, imagino que seja no mínimo
frustrante. Heróis e vilões, precisa-se deles. São úteis para
alimentar dogmas e utopias políticas, mesmo que o herói não tenha
vocação para tal e o vilão até ajude velhinhas a atravessar a
rua. Ver-vos assim acossados mete dó. Devem estar a sentir saudades
dos bons velhos tempos. Pena que a Guerra Fria tenha esfriado, que a
Cortina de Ferro já não exista e que a Cuba comunista, sem Fidel,
já não seja bem a mesma. Nós, as minorias étnicas que conhecemos
bem o sabor amargo da derrota, podemos afirmar: há de passar.
Queridos,
vos quero bem. Também me virou o estômago ver a bandeira da
Confederação desfilar pelos corredores da casa da democracia.
Naquele momento, soou dentro de mim a melodia acompanhada dos versos:
“Dormia/ A nossa pátria-mãe tão distraída/ Sem perceber que era
subtraída/ Em tenebrosas transações”. O samba-exaltação é de
Chico Buarque, tão genial e tão merecedor de um Nobel quanto Dylan,
por ter também criado uma nova expressão poética dentro da grande
tradição da canção (sul) americana. E falando em canções, por
favor, ouçam mais brasileiros, só vos fará bem. Eles, tal como
vocês, fazem delas verdadeiras teses poéticas para entendermos a
condição humana. Se jazz e blues são a vossa praia, sejam
aventureiros e procurem Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha e lavem a
alma no chorinho.
Lamento
que não tenham resolvido, vocês que puseram o primeiro homem na
Lua, essa coisa do racismo. Enquanto não o fizerem, outras nações
se desculparão com a ladainha de sempre: nos Estados Unidos da
América é pior. Como se existissem Olimpíadas do racismo e o ouro
brilhasse sempre nos vossos pescoços. Salvo as menções honrosas
para países como o Brasil e os do Leste Europeu, chega a ser poético
olhar para a lista do Comité Olímpico: 1 — Estados Unidos, 1022
medalhas de ouro; 2 — Rússia, 395; 3 — Grã-Bretanha, 263; 4 —
China, 227; 5 —França, 212.
Sabem,
um comentário que proferi no passado e que me deixou na mira dos
racistas de plantão que pululam nas redes sociais foi quando disse
que todo homem negro, conscientemente ou não, à dada altura da
vida, já odiou o homem branco: a sua cultura, a sua língua e o
poder que exerce sobre nós, os negros. Já invejou — melhor,
continua a invejar-lhe — o maior valor da humanidade, a liberdade
de simplesmente existir. Desculpai trazer um assunto doloroso, mas
não posso deixar de apontar que o ataque ao Capitólio foi um
esfregar nas fuças de todos nós, homens, mulheres e queers que
gritam “vidas negras importam”, esse tal de privilégio branco
que os afetados por ele insistem em denunciar, mas todos os que dele
se beneficiam insistem em negar — ou, ainda, os que sabem
exatamente como o mundo funciona insistem em assobiar para o lado,
como se não fosse com eles.
A
violência perpetuada contra os corpos negros — nas mãos de civis,
milícias, organizações racistas, grupos de extrema direita e até
do próprio Estado — é a mesma violência que matou Abraham
Lincoln e os dois Kennedy e subiu a colina do Capitólio e matou o
agente Brian D. Sicknick. Essa raiva alimenta-se acima de tudo da
indiferença cúmplice de pessoas do bem. Pagadores de impostos,
devotos e amantes da lei e da ordem. Essa violência é também
lucrativa, só assim podemos explicar que ainda se mantenha, agarrada
ao inconsciente caucasiano onde a ideia de que a maldição divina
aponta os africanos como descendentes de Caim, o primeiro homicida da
história, é algo real. Eu, como fruto dessa árvore genealógica e
solidário para com os irmãos e irmãs das diásporas americanas,
rogo a Deus: livrai-nos dessa penitência.
Queridos
estadunidenses, continuo a ter-vos afeto. Só isso explica as horas
passadas colado ao ecrã a ver o repetir de imagens semelhantes às
que me chegaram do norte de África há uma década, quando o jovem
Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante formado em engenharia, viu
ser-lhe confiscado o ganha-pão pela polícia. Além de lhe quebrarem
o espírito, exigindo o jabaculê da praxe, infligiram-lhe
humilhações que culminaram na sua autoimolação. Um protesto
trágico contra o desemprego e a pobreza na Tunísia que deu início
à Revolução de Jasmim e derrubou o ditador Ben Ali. As imagens da
insurreição na sede da democracia norte-americana me fizeram
lembrar as da Primavera Árabe e de todas as outras revoluções e
transformações políticas que direta ou indiretamente tiveram o
dedo dos Estados Unidos. Mas o que é chocante é que vós,
estadunidenses patriotas, não pedis o fim de ditaduras, mas para que
seja instaurada uma no vosso país.
O
que a insurreição em Washington expôs não foram só as vossas
divisões políticas. Eu, filho da Guerra Fria nascido e criado em
Benguela, pendurado nos galhos duma mangueira no meu quintal que me
servia de camarote, vi, na conturbada década de 1980, o capitalismo
derrotar o socialismo marxista. Eu vi, ninguém me contou. Começou
nas matas, depois no mar de Cabinda, passou para cidades e de seguida
para dentrodas casas de angolanos como eu. E, de repente, o dólar
nos fez confiar no seu poder divino e as kinguilas viram as
sacerdotisas da economia paralela em Angola. Por isso, mas não
apenas por isso, como não nos sentirmos afetados? Quer se queira,
quer não, até o centro do mundo se mudar para Pequim, o vosso
Capitólio é um pouco nosso também.
A
maior tragédia norte-americana é o negacionismo da sua própria
história. Martin Luther King, chamado a comentar a morte de John F.
Kennedy, afirmou: “O padrão imperdoável da nossa sociedade foi o
fracasso em prender os assassinos [de líderes dos direitos civis
assassinados]”. É um julgamento severo, mas inegavelmente
verdadeiro, que a causa da indiferença foi a identidade das vítimas.
Quase todos eram negros. E assim a praga se alastrou até reivindicar
o mais eminente dos norte-americanos, um presidente muito amado e
respeitado. A indiferença talvez seja o vosso maior pecado.
Queridos
estadunidenses, não vos faltaram vozes que pregassem, dos dois lados
do corredor, o que acontece quando não se denuncia e condena a
supremacia branca. Ouçam-nas e que Deus vos abençoe, que Deus salve
os Estados Unidos da América.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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