Lúcio,
estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite
para o seu galope.
Saudade
eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
A
primeira quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você
que era a vida. Não morreu da doença. Continuou vivendo, porém era
homem que não escrevia mais, ele que até então escrevera por uma
compulsão eterna gloriosa. E depois da doença, não falava mais,
ele que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos
poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais
tarde usou a mão esquerda para pintar: o poder criativo nele não
cessara.
Mudo
ou grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam
faiscado de um brilho intenso, fascinante e um pouco diabólico.
De
sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para
aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço
do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mão esquerda
(que, no entanto, era incapaz de escrever, só de pintar)
transparências e luzes e levezas que antes ele não parecia ter
conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da
doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das
trevas da doença.
A
segunda saudade foi já perto do fim.
Algumas
pessoas amigas dele estavam na antessala de seu quarto no hospital e
a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo
imóvel, em estado de coma.
Entrei
no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um
personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes,
mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu
gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante
a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se
conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de
olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em “mineira”: ganhei
diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.
Não
fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de
mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver
gente: eu vira a morte.
Estou
me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que
eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da
vida. Ele me ensinou o que é ter chama da vida. Ora vejo-nos alegres
na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR,
onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio,
Pedro e Miriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos
braços do outro.
Lúcio
e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu
com o que ele chamava de “vida apaixonante”. Em tantas coisas
éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade,
quem sabe teríamos nos casado.
Helena
Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de
borboleta sem quebrá-la, você que é irmã do Lúcio para todo o
sempre, por que não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de
seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta
com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do
Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou.
Enquanto
escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de
música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a
Pour Élise. Tanto ouvi, que a mola partiu. A caixinha de
música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro
de mim.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Nenhum comentário:
Postar um comentário