quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Lúcio Cardoso

Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope.
Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
A primeira quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você que era a vida. Não morreu da doença. Continuou vivendo, porém era homem que não escrevia mais, ele que até então escrevera por uma compulsão eterna gloriosa. E depois da doença, não falava mais, ele que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mão esquerda para pintar: o poder criativo nele não cessara.
Mudo ou grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de um brilho intenso, fascinante e um pouco diabólico.
De sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mão esquerda (que, no entanto, era incapaz de escrever, só de pintar) transparências e luzes e levezas que antes ele não parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das trevas da doença.
A segunda saudade foi já perto do fim.
Algumas pessoas amigas dele estavam na antessala de seu quarto no hospital e a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado de coma.
Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em “mineira”: ganhei diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.
Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a morte.
Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ele me ensinou o que é ter chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Miriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos braços do outro.
Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de “vida apaixonante”. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado.
Helena Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de borboleta sem quebrá-la, você que é irmã do Lúcio para todo o sempre, por que não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou.
Enquanto escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a Pour Élise. Tanto ouvi, que a mola partiu. A caixinha de música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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