terça-feira, 31 de outubro de 2023

Nuvens de Pássaros Brancos | V


Passados uns quinze dias da reunião de chá no pavilhão do Templo Engakuji, a filha da Sra. Ota foi visitar Kikuji em casa.
Mandou que a fizessem passar para a sala e, tentando calmar as batidas de seu coração, ele próprio foi abrir o armário de gêneros e pôs alguns frios no prato. Viera sozinha ou sua mãe a aguardava na porta, não se atrevendo a entrar? Kikuji não conseguia adivinhar.
Quando veio enfim para a sala, a moça se ergueu da cadeira para a reverência. Ele notou o lábio inferior um pouco saliente de sua boca fechada, enquanto ela baixava a cabeça.
Perdoe-me por tê-la feito esperar — disse. E passou por trás dela para ir abrir a porta envidraçada que dava para o jardim. As peônias brancas, no vaso, exalavam um perfume delicado. A jovem avançou os ombros redondos, pendendo ligeiramente para a frente quando ele se acercou.
Permite?... — e Kikuji sentou numa cadeira sem esperar.
Uma sensação de serenidade inexplicavelmente o invadiu, ao ver quanto ela se parecia com a mãe.
Tomei a liberdade de vir à sua casa sem prevenir — começou ela de olhos baixos.
É um grande prazer, não se preocupe. Teve dificuldade em achar o caminho?
Não.
Kikuji de repente lembrou que ela costumava vir até a porta, acompanhando seu pai nos bombardeios, como lhe contara a Sra. Ota no jardim do Templo Engakuji.
Quase lhe diz, mas se retém no último instante. E a observa à vontade, pois ela continua com os olhos baixos.
Sente-se submergir de novo por uma onda morna, lembrando a doçura da Sra. Ota. Não pode se negar a pensar ainda uma vez no total e raro abandono do seu abraço. Abandona-se também, profundamente retranquilizado e quase esquecendo de se manter na defensiva ante a filha. Sua prudente reserva tinha desaparecido, embora não tivesse ainda podido ver o olhar da moça e mergulhar o seu nos olhos obstinadamente descidos.
Tomei a liberdade de vir...
Fez uma pausa, levantou a cabeça e o fitou no rosto.
Tomei a liberdade... Trata-se de minha mãe: queria lhe pedir um favor.
Kikuji prendeu o fôlego.
Desejaria que a perdoasse.
Perdoasse? O que está dizendo?
Mas ao exprimir o seu assombro, compreendera na hora que a mãe contara tudo.
Se há alguém que deve pedir perdão, sou eu — declarou.
E eu ficaria contente que lhe perdoasse também tudo o que sucedeu com seu pai — prosseguiu ela.
Mas também aí o perdão devia ser dado antes a meu pai. Minha mãe já deixou este mundo, sabe... Ninguém mais poderia ter agora seja o que for a perdoar à senhora sua mãe.
Seu pai morreu tão cedo! Sempre me pergunto se não foi por causa das preocupações que minha mãe lhe causou. E também sua mãe, com maior razão. É o que eu já disse à minha mãe!
Você tem escrúpulos exagerados e é injusta em relação a ela.
Ah, por que não morreu ela primeiro, antes de seus pais!
A moça estava à beira de desmaiar, tanto o penoso diálogo lhe feria o pudor.
Compreendendo que não falava, em suma, senão das relações dela com a mãe, Kikuji se deu conta de como a coisa devia feri-la e ultrajar seus sentimentos, humilhando-a a fundo.
Por favor, perdoe minha mãe! — repetiu, parecendo, para dizê-lo, apelar às últimas forças.
Não é um perdão, mas a homenagem do meu reconhecimento e profundo respeito o que devo à sua mãe — precisou Kikuji com firmeza.
Ela é que é a culpada, com todas as suas fraquezas. E eu queria que não se importasse mais com ela de forma alguma. Suplico-lhe, deixe de se ocupar de minha mãe!
Falou rápido, com uma voz entrecortada e trêmula. Kikuji entendia agora o que desejava dizer pedindo aquele perdão: deixe minha mãe em paz, não volte a vê-la, era o que ela queria significar.
Não procure nem mesmo lhe telefonar mais — acrescentou.
A despeito do rubor flamejante que lhe invadira a face, ela ergueu a cabeça como para desafiar o próprio arisco pudor e olhou direto nos olhos de Kikuji. Mas seus grandes olhos estavam úmidos de lágrimas e seu olhar, sem o mínimo traço de animosidade, tinha qualquer coisa de suplicante, algo de um apelo desesperado.
Entendo — disse ele enfim. — Peço desculpas.
Eu suplico. E me atrevo a contar com você... Essas últimas palavras enrubesceram ainda mais a infeliz jovem, e Kikuji viu-se esbrasear até sua nuca longa e branca. Seria para acentuar a beleza do seu longo pescoço delicado que usava aquele pequeno broche branco na gola do casaco?
Minha mãe concordou, pelo telefone, com o encontro que você marcou — pôs-se a explicar um pouco menos crispada. — Fazia absoluta questão de ir e fui eu que a impedi. Me agarrei nela com toda a força quando quis sair. Foi por isso que esperou em vão.
Kikuji tinha, com efeito, chamado a Sra. Ota pelo telefone três dias depois do primeiro encontro. O tom dela não deixava qualquer dúvida sobre sua alegria, mas afinal não veio ao café onde a esperava. E desde aquela conversa pelo telefone, nada mais soubera a seu respeito.
Depois tive muita pena dela, mas, no momento, julguei-a tão odiosa que me opus tenazmente, fora de mim ao ponto de não saber mais onde estava!
Fumiko — me disse ela, — telefona tu mesma e diz a ele que não irei. Peço-te, telefona!” Fui ao aparelho, mas fiquei com o fone na mão, incapaz de falar. Com o rosto banhado de lágrimas, minha mãe não tirava os olhos do aparelho: era você que ela via, Sr. Mitani, não o telefone. É assim, minha mãe.
Ficaram um longo momento sem dizer nada. Por fim, Kikuji rompeu o comprido silêncio:
Após a sessão de chá — perguntou, — por que foi na frente quando sua mãe ficava a me esperar?
Porque queria que você soubesse como ela é, na realidade, um pouco má.
Má, ela? De fato, é demasiado boa!
A moça desceu os olhos e Kikuji observou de novo o seu rosto: o nariz miúdo e de forma tão perfeita, a boca com o lábio inferior um nada proeminente. A doçura desses traços lhe lembrava os da mãe.
Desde há muito sabia que a senhora sua mãe tinha uma filha — retomou Kikuji. — Não raro almejei falar de meu pai com ela.
Ela inclinou a cabeça em sinal de aquiescência.
Foi uma ideia que eu também tive.
Se não tivesse ocorrido nada entre a mãe dela e eu, pensou Kikuji, agora eu poderia lhe falar livremente de meu pai. Mas, pensando — era tão estranho assim? —, foi justamente graças ao que lhe ocorrera com a Sra. Ota, que pudera de todo o coração lhe perdoar a ligação com o pai e compreender tão bem a alma dos dois. As coisas são complexas.
Kikuji fazia em silêncio essas reflexões quando a moça, decerto julgando que prolongara indevidamente a visita, ergueu-se com precipitação. Ele saiu com ela para acompanhá-la.
Espero que possamos falar um dia juntos de meu pai — disse Kikuji. — E também que me fale de sua mãe. É uma pessoa tão digna de admiração!
Sem dúvida era bastante egoísta o que dizia, mas representava exatamente o que pensava.
Sim... Mas você não vai se casar logo?
Eu?
Você. Soube por minha mãe. Com a Srta. Yukiko Inamura.
Absolutamente. Não há nada a esse respeito. A rua descia em declive logo após a porta do
jardim, fazendo a meia altura uma curva de onde, a gente se virando, não via mais que a parte de cima das árvores do jardim de Kikuji. Andando, ele divisava em mente a moça do sembazuru, que a visitante há pouco lhe lembrara. Ao chegarem na curva, ela se deteve e se despediu.
Kikuji tornou a subir em direção à casa, enquanto ela se afastava, descendo sempre.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

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