Hoje
bateu uma saudade danada de visitar uma feira literária, conversar
com leitores, assinar os seus livros, tirar a selfie de praxe e num
abraço agradecer-lhes por manterem viva essa coisa tão necessária
para a nossa saúde mental a que chamamos de literatura. Me deu até
saudade de algo que não faço desde que me mudei para Berlim:
visitar escolas do ensino secundário no Portugal mais remoto, como
Vila Nova de Paiva, Penalva do Castelo, Arruda ou Sobral de Monte
Agraço, lugares que nunca me ocorreria visitar se não fosse pelos
livros e pela curiosidade em conhecer o outro.Colhi tanto prazer
nisso que não o via como sacrifício. Contrariando os meus hábitos
de notívago, despertava com uma alegria de criança aniversariante,
antes do galo cantar. Vestia a minha camisa e gravata favoritas e
corria para a estação de comboio de Santa Apolónia, cruzando-me no
caminho com outros madrugadores como eu, lisboetas por nascimento ou
afeto, africanos europeus, irmãos da diáspora que fazem parte do
leque de personagens que pululam em muitas das minhas histórias.
Esses
personagens me acompanharam da Flip em Paraty ao Africa Writes em
Londres, do Elinga Teatro em Luanda à Escola Secundária de Penalva
do Castelo, uma vila do distrito de Viseu, não muito longe de Fornos
de Algodres e Mangualde. Na biblioteca da escola, um tanto retraídos,
duas dezenas de alunos aguardavam pacientemente pela minha
apresentação. Esforçavam-se para não perder a compostura e
envergonharem os professores que estavam visivelmente mais
entusiasmados com a minha visita do que aquela jovem plateia, e eu
tentando esconder o nervosismo miudinho. É infinitamente mais fácil
subir para cima de um palco e atuar para multidões de centenas de
pessoas, no Estádio dos Coqueiros em Luanda ou no Festival Rock al
Parque em Bogotá, do que ser submetido a interrogatório por um
grupo de curiosos por saber o que significa ser escritor.
E
na altura respondi-lhes que era o único exercício que sabia
praticar para materializar em palavras aquilo que sabia sobre mim. O
meu nome, por exemplo, diz mais sobre mim do que qualquer outro
adjetivo que já me fora atribuído. E em Penalva do Castelo, por
exemplo, havia um único aluno negro na plateia, e carrego até hoje
o seu olhar de espanto ao ver-me entrar na sala, tal qual Sidney
Poitier no filme Ao mestre, com carinho, como um dos poucos
momentos em que senti verdadeiro orgulho das escolhas que fiz.
Representatividade importa.
Não
cheguei a perguntar-lhe o que sentira ao me conhecer, não foi
necessário. Bastou-me ver, à medida que ia desfilando as
personagens do meu mundo, e embora ele nunca tivesse lido nenhum
livro meu, que lhe eram também familiares. Ele, que começara
curvado para dentro de si, consternado por ter sido obrigado pela
professora a ouvir a fala de um escritor angolano, ao ouvir-me nos
primeiros dez minutos, inclinou-se para a frente com os olhos
esbugalhados, intrigado com a curiosidade dos colegas habitualmente
avessos a lenga-lengas literárias mas que ali, de braço levantado,
exigiam que lhes fosse dada a oportunidade de apresentar uma questão.
E
eles queriam saber tudo. Os títulos dos meus livros, os escritores
que me influenciaram, a música que ouvia e até os sapatos que
trazia calçados. E lhes fiz a vontade. Falei-lhes sobre a
importância de lerem autores de culturas diferentes, como o escritor
congolês Alain Mabanckou, que, ao sermos apresentados no festival
Back to Black, no Rio de Janeiro, brindou-me com o termo sapeurs,
ao reparar que não me rendera ao calor que ainda sentia naquele
final de verão carioca.
As
capas dos discos be-bop da Blue Note, juntamente com as fotografias
de Roy DeCarava e Gordon Parks, moldaram de forma significativa o meu
estilo pessoal. O traje que habitualmente uso, fato e gravata, como
já aludi em momentos anteriores, não só estabelece uma ligação
com as gerações pioneiras de nacionalistas africanos que surgiram
nos anos após a Segunda Guerra Mundial, como também com osmentores
do movimento Négritude — o levante literário de inspiração
afro-franco-caribenha que teve origem na década de 1930, sustentado
pela crença central de que há um vínculo cultural que une os
africanos negros e os seus descendentes, não importa onde estejam no
mundo. A escolha do fato e gravata também me transporta, quase como
se estivesse numa cápsula do tempo, para a Angola do meu avô, onde
essas peças de vestuário lhe serviam de uniforme para camuflar,
resistir e sonhar.
Os
sapeurs, a que o autor de Copo quebrado e Memórias
de porco-espinho se referiu ao ver-me vestido de fato completo,
são um grupo de dândis que se preocupam em dar um toque de classe e
glamour à realidade violenta e pobre dos bairros na periferia de
Brazzaville e Kinshasa. E isso dá-lhes estatuto de celebridades
locais — são muitas vezes remunerados para aparecerem em
cerimônias festivas, assim como em funerais, tudo pela sua postura
social e pelos valores exemplares.
Lembro-me
daquele aluno em Penalva do Castelo agora que, no rescaldo da morte
de George Floyd, manifestações antirracismo se multiplicam um pouco
por todo o mundo e muitos embarcaram numa busca espiritual,
condenando atos de discriminação e derrubando estátuas de figuras
históricas de conduta moral condenável. Escritores negros pedem aos
seus pares brancos que revelem os valores recebidos pelas suas
primeiras obras. Tudo isso no meio de uma pandemia mortífera, num
mundo em que o bafo do fascismo na nossa nuca se faz sentir cada vez
mais intenso. E, como escrever é a única coisa que sei fazer, faço
um apelo para que nós, escritores e leitores, façamos mais. Nossas
instituições literárias podem e devem fazer melhor para refletir a
diversidade racial nas nossas sociedades. Autores afrodescendentes e
histórias de negros já provaram que vendem, e é importante começar
a olhar para além da lista dos autores negros mais vendidos.
Agentes, editores, críticos e autores de grupos marginalizados:
agora é hora de incluir. A nossa sobrevivência enquanto indústria
depende disso.
Acordemos
então. Já nos apercebemos de que a arte, aquela que conforta os
perturbados e perturba os confortáveis, está moribunda. Em parte
porque os seus guardiões esqueceram-se de ouvir o que pregam e, tal
como Ícaro, aproximaram-se demasiado do sol. Puseram-se a serviço
de interesses que insistem em tratar a arte da mesma forma que um
“santa cecilier” trata as suas samambaias, essencialmente para
fins ornamentais. Todas as sociedades têm os líderes, os
intelectuais e os criminosos que merecem. Se só agora chegaste à
festa, sê bem-vindo. Pela parte que nos toca, nós, os negros,
agradecemos, mas não basta postar nas redes sociais o
#blacklivesmatter. Não é suficiente assinar petição, falar
mal do governo de Bolsonaro, de Trump ou lamentar a morte
injustificada de mais um corpo negro na periferia.
Racismo
não tem mais espaço em democracia. Se vale a pena lutar por esse
ideal, que, até agora, com todas as suas falhas, continua a ser o
melhor sistema político que temos, e digo isso por experiência
própria, a Angola comunista não me deixou saudade, assim como
acredito que o Brasil da ditadura seja algo que ninguém com o mínimo
de bom senso quer ver se repetir. Então, pelo futuro dos nossos
filhos, é hora de começarmos a drenar o pântano do racismo
estrutural. Acordemos, porque, como disse o rapper afro-americano
Killer Mike, agora é a hora de planificar, planejar, engendrar,
organizar e mobilizar.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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