segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Cartas na Rua | DOIS


20

Nossos trinta minutos eram agora devotados à aprendizagem do esquema. Davam a cada um de nós um pacote de cartas para decorar e classificar em nossas caixas. Para seguir o esquema era preciso classificar cem cartas em oito minutos ou menos, com pelo menos 95 por cento de acerto. Davam-lhe três chances de passar, e se você fracassasse na terceira vez, eles deixavam você ir. Quero dizer, você era despedido.
Alguns de vocês não conseguirão — disse o italiano. — O que significa que talvez tenham nascido para serem outra coisa na vida. Talvez acabem como presidentes da General Motors.
Quando nos livrávamos do italiano, tínhamos o nosso pequeno e simpático instrutor de esquemas que nos encorajava.
Vocês conseguirão, camaradas, não é tão duro quanto parece.
Cada grupo tinha o seu próprio instrutor de esquemas, e eles também eram avaliados de acordo com quantos passavam em seu grupo. Tínhamos o cara com a menor porcentagem. Ele estava preocupado.
Não há nada com que se preocupar, camaradas, é só se concentrar.
Alguns dos companheiros tinham pacotes bem leves. Eu tinha o pacote mais gordo de todos.
Eu apenas ficava por ali com as minhas novas roupas extravagantes. Parado, as mãos dentro dos bolsos.
Chinaski, qual é o problema? — perguntou o instrutor. — Sei que você pode dar conta.
Sim. Claro. Estou pensando.
Pensando no quê?
Em nada.
Depois disso me afastei.
Uma semana depois, ainda estava plantado lá com as mãos no bolso, quando um substituto se aproximou de mim:
Senhor, acho que estou pronto para testar meu esquema.
Tem certeza? — perguntei-lhe.
Tenho alcançado 97, 98, 99 e alguns 100 nos treinos de esquema.
Você deve entender que gastamos uma fortuna treinando você. Queremos que você seja um ás!
Senhor, acredito que estou realmente pronto!
Tudo bem. — Estendi a mão e o cumprimentei. — Vá em frente, meu rapaz, e boa sorte!
Obrigado, senhor.
Ele correu em direção à sala de esquemas, um aquário de vidro onde o punham para ver se você conseguia nadar nas águas deles. Pobre peixe. Que queda para quem já tinha sido o vilão do vilarejo. Entrei na sala de prática, retirei o elástico do meu pacote de cartas e olhei para elas pela primeira vez.
Que merda! — eu disse.
Alguns caras riram. Então o instrutor de métodos disse:
Seus trinta minutos acabaram. Você retornará para o pavilhão de serviço.
O que significava voltar para a jornada de doze horas.
Eles não conseguiam gente suficiente para dar conta das correspondências, de modo que os que permaneciam tinham de fazer tudo. No cronograma de trabalho, eles nos haviam escalado para duas semanas seguidas, depois das quais teríamos quatro dias de descanso. Isso nos estimulava. Quatro dias de descanso. Na última noite antes dos nossos quatro dias de folga, o alto-falante anunciou:
ATENÇÃO! TODOS OS SUBSTITUTOS DO GRUPO 409! ...
Eu estava no 409.
...SEUS QUATRO DIAS DE FOLGA FORAM CANCELADOS; VOCÊS ESTÃO ESCALADOS PARA SE APRESENTAR NESTES QUATRO DIAS!

21

Como se não bastasse tudo isso, Joyce arranjou um emprego na Prefeitura, no Departamento de Polícia do distrito. Eu vivia agora com uma tira! Mas ao menos era durante o dia, o que me dava um certo descanso daquelas mãos tão faceiras, exceto pelo fato de que... Joyce comprou dois periquitos, e os malditos bichos não falavam, só faziam uns sons medonhos o dia todo.
Joyce e eu nos encontrávamos no café da manhã e no jantar — tudo muito brusco —, era bom desse jeito. Embora ela ainda desse um jeito de me estuprar uma vez ou outra, era melhor do que antes. Exceto pelos... periquitos.
Veja, baby...
O que é agora?
Tudo bem, já me acostumei com os gerânios e as moscas e Picasso, mas você tem de admitir que ando trabalhando doze horas por noite, que tenho que estudar o método por fora, e, além disso, você ainda liquida com o resto de minha energia...
Liquido?!
Tudo bem. Me expressei mal. Desculpa.
O que você quer dizer com “liquidar”?
Nada, já disse que me expressei mal! Agora, me escute, o problema são os periquitos.
Ah, agora são os periquitos! Eles também estão liquidando você?
Sim, estão.
Quem está no comando?
Veja bem, não comece a fazer piada. Não seja nojenta. Estou tentando falar sério com você.
Agora quer me dizer como devo me comportar!
Tudo bem! Caralho! É você quem tem a grana! Vai me deixar falar ou não? Diga-me. Sim ou não?
Tudo bem, bebê chorão: sim.
Bem, eis o que o bebê chorão tem a dizer: “Mamãe! Mamãe! Esses periquitos de merda estão me deixando pirado”.
Tá, diz para a mamãe como os periquitos estão deixando você pirado.
Bem, é assim, mamãe: os bichos matraqueiam o dia inteiro, não param nunca, e eu fico esperando que digam alguma coisa, mas nunca dizem nada, e eu não consigo dormir durante o dia porque fico escutando esses idiotas!
Tudo bem, bebezinho. Se eles não te deixam dormir, ponha os bichos lá fora.
Lá fora, mamãe?
Sim, ponha os bichos lá fora.
Está bem, mamãe.
Ela me deu um beijo e desceu a escada rebolando a caminho de seu trabalho de tira.
Fui para a cama e tentei dormir. Como matraqueavam! Todos os músculos do meu corpo doíam. Deitasse sobre um lado, sobre o outro, de costas, qualquer posição doía. Achei que o melhor jeito era de bruços, mas logo ficou cansativo. Eu levava dois ou três longos minutos para mudar de uma posição para outra.
Ficava me debatendo e me virando, praguejando, gritando um pouco e também rindo um pouco, do ridículo de toda a situação. Matracas a mil. Conseguiram me liquidar. O que eles entendiam sobre sentir dor, metidos em sua pequena gaiola? Cabeças de vento tagarelando! Só penas; o cérebro do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Dei um jeito de sair da cama, entrar na cozinha, encher um copo d’água e jogar neles.
Filhos da puta! — amaldiçoei-os.
Eles me olharam de um modo nocivo sob suas penas molhadas. Eles ficaram em silêncio! Nada como o velho tratamento com água. Roubei esse ensinamento dos índios encolhedores de cabeça.
Então o de cor verde com peito amarelo inclinou-se e bicou o próprio peito. Depois olhou para cima e começou a matraquear com o vermelho de peito verde, e assim começaram tudo de novo.
Sentei-me na beirada da cama e fiquei a escutá-los. Picasso apareceu e mordiscou o meu tornozelo.
Não faltava mais nada. Levei a gaiola para fora. Picasso me seguiu. Dez mil moscas começaram a voar. Pus a gaiola no chão, abri a portinhola e me sentei nos degraus.
Os pássaros olharam para a portinhola. Não entendiam aquilo, mas ao mesmo tempo entendiam. Podia sentir suas mentes minúsculas tentando funcionar. Tinham comida e água bem ali, mas o que era aquele espaço aberto?
O verde de peito amarelo foi primeiro. Escorregou pela abertura do poleiro. Sentou-se agarrando o arame. Olhou para as moscas à volta. Ficou ali parado por uns quinze segundos, tentando decidir. Foi quando alguma coisa se iluminou em sua cabecinha. Bem em sua cabecinha. Ele não saiu voando. Disparou direto em direção ao céu. Alto, alto, alto, alto. Bem alto! Reto como uma flecha! Picasso e eu ficamos ali sentados, assistindo. O desgraçado tinha ido embora.
Depois foi a vez do outro, o vermelho de peito verde.
O vermelho estava muito mais hesitante. Andava nervoso ao pé da gaiola. Era uma decisão terrível. Homens, pássaros, todos têm de tomar esse tipo de decisão. Era um jogo duro.
Assim, o velho vermelho andava em círculos, pensando no assunto. A luz amarela do sol. Moscas zunindo. Um homem e um cachorro à espreita. Todo aquele céu aberto, todo aquele céu.
Era demais. O velho vermelho voou para o fio. Três segundos.
ZUUM!
O pássaro tinha sumido.
Picasso e eu apanhamos a gaiola vazia e entramos em casa.
Pela primeira vez em semanas, consegui dormir bem. Até esqueci de colocar o despertador. Eu estava andando num cavalo branco pela Broadway, Nova York. Eu tinha sido eleito prefeito havia pouco. Estava com o pau ferrado, e alguém atirou um monte de lama em mim... e então Joyce me sacudiu.
O que aconteceu com os passarinhos?
Que se fodam os passarinhos! Sou o prefeito de Nova York!
Perguntei dos passarinhos! Só estou vendo uma gaiola vazia!
Passarinhos? Passarinhos? Que passarinhos?
Acorde, seu merda!
Dia duro no escritório, querida? Você parece irritada.
Onde ESTÃO os PASSARINHOS?
Você disse que eu podia pôr os periquitos lá fora se eles não me deixassem dormir.
Eu quis dizer para você colocar os bichos na varanda dos fundos ou do lado de fora, mas dentro da gaiola, seu burro!
Burro?
É, burro! Não me diga que deixou aqueles passarinhos com a gaiola aberta! Você os deixou escapulir de verdade?
Bem, tudo o que sei dizer é que eles não estão trancados no banheiro, nem no armário.
Eles vão morrer de fome lá fora!
Eles podem apanhar minhocas, comer umas frutinhas, algo do gênero.
Não podem, não podem. Eles não sabem fazer isso! Eles vão morrer!
Deixe que eles aprendam ou morram — eu disse e depois me virei devagar para voltar a dormir. Vagamente, podia escutá-la preparar o jantar, derrubando tampas e colheres no chão, praguejando. Mas Picasso estava na cama comigo, Picasso estava a salvo dos seus sapatos pontiagudos. Estendi a mão, ele a lambeu, e depois dormi.
Quer dizer, dormi por algum tempo. A próxima coisa de que tive consciência era que estava sendo acariciado. Abri os olhos e ela estava me fitando com um olhar insano. Estava nua, os peitos balançando diante de meus olhos. Os cabelos me davam cócegas nas narinas. Pensei nos seus milhões, peguei-a, virei-a de costas e meti com tudo.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

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