sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Capítulo catorze | História da chegada dos brancos


Houve um tempo em que o encontro do branco foi julgado de boa fé. Nos avistamentos iniciais, pelo areal, chegaram em suas pirogas gigantes e atracaram apontando para os abaeté, como se indicassem protuberâncias raras nos corpos vermelhos. Moveram muito calmos para significar a paz e desceram ao chão ofertas que a comunidade tomou com alegria. Nesses encontros, os abaeté julgaram que os brancos significavam uma amorosidade distante que levara muita eternidade a conseguir chegar até eles. Gesticulando de modo simples, num fascínio grato, a comunidade admitiu os brancos no exterior de suas aldeias, no exterior de suas cercas, mas com esperança e procurando descodificar a língua que, então, era escutada com curiosidade e sem temor. Alguns tardios descodificaram considerando que ampliavam o espírito. Todas as palavras de todas as línguas juntas são o tamanho da divindade. Apenas um deus teria o tamanho de todas as línguas, esse seria o espírito absoluto do mundo. O inteiro dos que soam e a vastidão dos mortos. Pensavam assim os gentis abaeté.
Nesse primeiro deslumbre, a boca dos brancos era escutada com a expectativa eufórica de ver o que criaria. Acreditavam os abaeté que, a qualquer momento, brotaria do som uma criação magnífica que pousaria diante de todos numa dádiva inequívoca, como relatavam as sapiências ancestrais. Das bocas brancas e de seus vocábulos novos poderia chegar a pronúncia que faltava da Verdadeiríssima Divindade, enfim generosa por entregar quanto bastaria para a longevidade segura, alegre, do povo e da mata. Escutar os brancos era, pois, um cuidado fundamental, e todos quantos podiam se silenciavam para apreciar a canção natural que pareciam reconhecer àquelas vozes. E os brancos falavam sem parar. Eram canoros como algumas aves incansáveis. Os abaeté sorriam maravilhados.
Podia ser que o clarão prometido se acendesse de suas bocas. Podia ser que fosse um clarão vocabular, produzindo um relâmpago que, ao invés de subir, deitasse ao chão, ao colo de um guerreiro que, até por ternura, o poderia tomar. O galho ósseo do relâmpago, o osso prometido, poderia ser uma evidência trazida pelas peles pálidas daqueles animais inauditos que começaram por incutir fascínio na imaginação da comunidade das ilhas de três mares. Quando pronunciavam, as palavras escutadas de seus corpos alvos criavam o sonho de se fazerem luz eterna, uma propriedade celeste ou do fogo que deitasse ao chão e ficasse para sempre. Os abaeté prestavam atenção. Por esperança, os abaeté prestavam muita atenção.
Subitamente, alguns brancos bebiam estranhos sangues azedos e emocionavam por folias, fúrias e até sono. Bebiam os sangues e queriam partilhá-los com os abaeté que, imediatamente, entenderam ser tocaia, venenos corruptores, e não beberam mais. Frustraram e temeram. Outros brancos recolhiam aqueles que emocionavam e os amarravam no bojo das pirogas gigantes, de onde emanavam fogos e fumos e dos quais os de pele vermelha tiveram sempre algum receio. Uma noite, um branco que bebeu o estranho sangue azedo quis tomar uma feminina que fugiu com seus atributos mata adentro. O branco, sucumbindo, empunhou o até então desconhecido grito de ferro e cuspiu. Cuspiu na mata já escura que estremeceu ao ruído jamais escutado de uma arma tão cruel. Estava de corpo exposto, descoberto de seu entrançado fino, e correu igualmente, sempre cuspindo seu grito de ferro, sua mão voava no ar e a própria mão parecia puxá-lo a toda a força, a toda a fúria. Os abaeté desconheceram aquele gesto e só na iluminação do sol aferiram que o cuspe da arma deixava sulco violento na mata. A mais digna árvore abria um golpe feio por ofício nenhum. Era um golpe sem propósito que a comunidade quis saber por que razão fora feito. Então, o pajé desse tempo entendeu que a cuspida mataria a feminina se houvesse de lhe acertar. O santo abriu muito os olhos e anunciou o medo. O grito de ferro, ele noticiou, era uma arma. A pior arma de todas. A mais ruidosa e a mais mortal. Abriria uma feminina em dois, caso lhe tocasse.
Intuindo tudo aquilo, alguém chegou para testemunhar que a pequena parte visível da Pedra que Soa estava golpeada por igual. O grito de ferro lhe cuspira na escuridão da mata pela noite anterior. A comunidade berrou e jogou os corpos ao chão, submissa e apavorada. O pajé escutou a voz coral da Pedra Que Soa e confirmou. Todos repetiam que a cuspida ruidava na mata inteira e poderia até quebrar o céu. Todos repetiram que o grito furaria de apenas se escutar. Criava dor. Doía por dentro em cada um dos bocados do corpo e haveria de fissurar os ossos, haveria de dividir as vísceras igualmente apavoradas e certamente escolhendo morrer. Cada víscera morrendo depois da outra até tudo ser morto e humilhado numa vergonha infinita de se haver falhado à encantaria. Os abaeté agarravam as cabeças em desespero e acreditariam jamais que alguém pudesse cuspir à Pedra Que Soa. Mutilar, ofender, agredir a encantaria ali aninhada em sua alegria. Acreditariam jamais. Foram ver. A sagrada morada cicatrizava o golpe rude bem diante dos olhos de todos. Estava indignada, silente subitamente, pela emoção inimiga do branco. Era uma emoção inimiga. Trazia a morte, tinha de ser guerreada. O pajé intuiu que os brancos eram apenas uma semelhança. Uma fera dotada de semelhança. Não eram alguém. Animais feios, os brancos faziam o horror. Não significavam maravilha alguma. Infectavam as ilhas abaeté, haveriam de coagular as águas dos abaeté. Eram sujos. Suas intenções eram primitivas, sem educação, bestiais, desconhecedoras da gentileza. Não eram verdadeiríssimos.
O pajé declarou o sem voo o pior grau da tristeza. A comunidade fez a tristeza. A comunidade enfureceu, misturou, e foi encontrar os brancos no areal, pedindo que seguissem em suas pirogas para a lonjura de onde haviam chegado. E os brancos, que eram em duas pirogas e apenas uns poucos, distraídos com suas bebidas más e alguns já emocionados, quiseram logo guerrear e tombaram vários, escapando metade, que navegou para dentro das águas daquele mesmo primeiro mar. Os abaeté debateram que os brancos chegavam em suas maldades. Eram inimigos, repetiam. E entoavam:
malditos. São malditos.
Foram amaldiçoados para que não houvesse esquecimento, e foram proibidas as suas palavras para que os espíritos puros do povo da mata não fossem capturados pelo inquinado de seus sons, pela força de seus deuses terríveis. Alguns tardios, por virtude maior e intuição, foram escolhidos para o risco de lembrar, avisados que estavam de servir a língua para entender o inimigo, caso acontecesse a necessidade de o espiar e saber de sua intenção. À Verdadeiríssima Divindade e aos ancestrais foi pedida a piedade de jamais regressar um branco às ilhas dos três mares. As súplicas foram feitas por muitas estações quentes e frias, até ser impossível acreditar que os brancos se haviam extinguido. Muitos passaram para guerrear. Muitos atacaram os abaeté e tantos abaeté tombaram na maldade branca. Seus nomes são entoados nos rituais para fortalecer suas mortes. Suas mortes trarão a fúria necessária para revidar. Os mil brancos do mundo inteiro, talvez mil dez vezes, tombariam um dia à justiça abaeté.
Estavam nas mãos do pajé os objectos antigos que os brancos ofertaram, aqueles poupados da fúria e do asco da comunidade. Como esse pouco de igarapé seco, sempre frio, parado sem movimento, onde os rostos se mostravam límpidos. Agora, Pai Todo o escondia para deter a prova e a ciência, mas poupando o povo ao horror. Ele explicava que, com aquilo, o branco encarcerou o espírito do igarapé, a sua liberdade, sua necessidade de correr para águas maiores. Quando se discutia aquele objecto, jamais voltado a ser mostrado, meio esquecido sob um alto de terra que o santo severamente proibia, a aldeia buscava águas livres em seus recipientes e as dispunham pela pele e pelo chão. A aldeia cantava e sorria às águas para desentristecê-las. Amavam as águas que lhes matavam a sede e banhavam os corpos, as que educavam os curumins e as curatãs, que sanavam mazelas, purificavam suas feridas, ajustavam aos corpos em cada detalhe sem resistência. Eram benignas. As águas limpas onde podiam mirar seus rostos eram benignas.
Por vezes, Pai Todo tomava o pouco de igarapé seco e o mergulhava no imenso primeiro mar para saber se lhe ressuscitara a vontade líquida. Julgava que, um dia, quando verdadeirissimamente fosse possível e tivesse vontade, o igarapé seco sairia de seu cárcere para desaguar, recuperando sua merecida alegria. Uma e outra vez, sem ninguém, Pai Todo levava o objecto com a esperança de o libertar como se libertaria uma ave que pudesse enfim voltar a voar.
O lamento do santo acontecia sobretudo por desesperançar numa redenção para o branco. Se houvesse o igarapé seco de voltar a molhar, talvez o espírito do branco pudesse educar para a gentileza. Uma e outra vez, sem ninguém, Pai Todo recolhia o objecto e o escondia no alto de terra, fazendo suas orações e suplicando a intuição. A Voz Coral nada lhe trazia. A comunidade seguia em perigo e sua dor não tinha como ser afastada.

*

Escutando novamente as histórias acerca do acontecimento dos brancos, Honra perguntava:
é verdade que as pirogas navegadas pelo animal branco são de dez tamanhos e fogueiam e fumegam no vazio interior. De que acende esse fogo sem acender da própria piroga. Poderá o branco acender o fogo sem arder.
Na sua cabeça ficava a dúvida de saber se esse fogo era a captura prometida do relâmpago.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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