Houve
um tempo em que o encontro do branco foi julgado de boa fé. Nos
avistamentos iniciais, pelo areal, chegaram em suas pirogas gigantes
e atracaram apontando para os abaeté, como se indicassem
protuberâncias raras nos corpos vermelhos. Moveram muito calmos para
significar a paz e desceram ao chão ofertas que a comunidade tomou
com alegria. Nesses encontros, os abaeté julgaram que os brancos
significavam uma amorosidade distante que levara muita eternidade a
conseguir chegar até eles. Gesticulando de modo simples, num
fascínio grato, a comunidade admitiu os brancos no exterior de suas
aldeias, no exterior de suas cercas, mas com esperança e procurando
descodificar a língua que, então, era escutada com curiosidade e
sem temor. Alguns tardios descodificaram considerando que ampliavam o
espírito. Todas as palavras de todas as línguas juntas são o
tamanho da divindade. Apenas um deus teria o tamanho de todas as
línguas, esse seria o espírito absoluto do mundo. O inteiro dos que
soam e a vastidão dos mortos. Pensavam assim os gentis abaeté.
Nesse
primeiro deslumbre, a boca dos brancos era escutada com a expectativa
eufórica de ver o que criaria. Acreditavam os abaeté que, a
qualquer momento, brotaria do som uma criação magnífica que
pousaria diante de todos numa dádiva inequívoca, como relatavam as
sapiências ancestrais. Das bocas brancas e de seus vocábulos novos
poderia chegar a pronúncia que faltava da Verdadeiríssima
Divindade, enfim generosa por entregar quanto bastaria para a
longevidade segura, alegre, do povo e da mata. Escutar os brancos
era, pois, um cuidado fundamental, e todos quantos podiam se
silenciavam para apreciar a canção natural que pareciam reconhecer
àquelas vozes. E os brancos falavam sem parar. Eram canoros como
algumas aves incansáveis. Os abaeté sorriam maravilhados.
Podia
ser que o clarão prometido se acendesse de suas bocas. Podia ser que
fosse um clarão vocabular, produzindo um relâmpago que, ao invés
de subir, deitasse ao chão, ao colo de um guerreiro que, até por
ternura, o poderia tomar. O galho ósseo do relâmpago, o osso
prometido, poderia ser uma evidência trazida pelas peles pálidas
daqueles animais inauditos que começaram por incutir fascínio na
imaginação da comunidade das ilhas de três mares. Quando
pronunciavam, as palavras escutadas de seus corpos alvos criavam o
sonho de se fazerem luz eterna, uma propriedade celeste ou do fogo
que deitasse ao chão e ficasse para sempre. Os abaeté prestavam
atenção. Por esperança, os abaeté prestavam muita atenção.
Subitamente,
alguns brancos bebiam estranhos sangues azedos e emocionavam por
folias, fúrias e até sono. Bebiam os sangues e queriam partilhá-los
com os abaeté que, imediatamente, entenderam ser tocaia, venenos
corruptores, e não beberam mais. Frustraram e temeram. Outros
brancos recolhiam aqueles que emocionavam e os amarravam no bojo das
pirogas gigantes, de onde emanavam fogos e fumos e dos quais os de
pele vermelha tiveram sempre algum receio. Uma noite, um branco que
bebeu o estranho sangue azedo quis tomar uma feminina que fugiu com
seus atributos mata adentro. O branco, sucumbindo, empunhou o até
então desconhecido grito de ferro e cuspiu. Cuspiu na mata já
escura que estremeceu ao ruído jamais escutado de uma arma tão
cruel. Estava de corpo exposto, descoberto de seu entrançado fino, e
correu igualmente, sempre cuspindo seu grito de ferro, sua mão voava
no ar e a própria mão parecia puxá-lo a toda a força, a toda a
fúria. Os abaeté desconheceram aquele gesto e só na iluminação
do sol aferiram que o cuspe da arma deixava sulco violento na mata. A
mais digna árvore abria um golpe feio por ofício nenhum. Era um
golpe sem propósito que a comunidade quis saber por que razão fora
feito. Então, o pajé desse tempo entendeu que a cuspida mataria a
feminina se houvesse de lhe acertar. O santo abriu muito os olhos e
anunciou o medo. O grito de ferro, ele noticiou, era uma arma. A pior
arma de todas. A mais ruidosa e a mais mortal. Abriria uma feminina
em dois, caso lhe tocasse.
Intuindo
tudo aquilo, alguém chegou para testemunhar que a pequena parte
visível da Pedra que Soa estava golpeada por igual. O grito de ferro
lhe cuspira na escuridão da mata pela noite anterior. A comunidade
berrou e jogou os corpos ao chão, submissa e apavorada. O pajé
escutou a voz coral da Pedra Que Soa e confirmou. Todos repetiam que
a cuspida ruidava na mata inteira e poderia até quebrar o céu.
Todos repetiram que o grito furaria de apenas se escutar. Criava dor.
Doía por dentro em cada um dos bocados do corpo e haveria de
fissurar os ossos, haveria de dividir as vísceras igualmente
apavoradas e certamente escolhendo morrer. Cada víscera morrendo
depois da outra até tudo ser morto e humilhado numa vergonha
infinita de se haver falhado à encantaria. Os abaeté agarravam as
cabeças em desespero e acreditariam jamais que alguém pudesse
cuspir à Pedra Que Soa. Mutilar, ofender, agredir a encantaria ali
aninhada em sua alegria. Acreditariam jamais. Foram ver. A sagrada
morada cicatrizava o golpe rude bem diante dos olhos de todos. Estava
indignada, silente subitamente, pela emoção inimiga do branco. Era
uma emoção inimiga. Trazia a morte, tinha de ser guerreada. O pajé
intuiu que os brancos eram apenas uma semelhança. Uma fera dotada de
semelhança. Não eram alguém. Animais feios, os brancos faziam o
horror. Não significavam maravilha alguma. Infectavam as ilhas
abaeté, haveriam de coagular as águas dos abaeté. Eram sujos. Suas
intenções eram primitivas, sem educação, bestiais,
desconhecedoras da gentileza. Não eram verdadeiríssimos.
O
pajé declarou o sem voo o pior grau da tristeza. A comunidade fez a
tristeza. A comunidade enfureceu, misturou, e foi encontrar os
brancos no areal, pedindo que seguissem em suas pirogas para a
lonjura de onde haviam chegado. E os brancos, que eram em duas
pirogas e apenas uns poucos, distraídos com suas bebidas más e
alguns já emocionados, quiseram logo guerrear e tombaram vários,
escapando metade, que navegou para dentro das águas daquele mesmo
primeiro mar. Os abaeté debateram que os brancos chegavam em suas
maldades. Eram inimigos, repetiam. E entoavam:
malditos.
São malditos.
Foram
amaldiçoados para que não houvesse esquecimento, e foram proibidas
as suas palavras para que os espíritos puros do povo da mata não
fossem capturados pelo inquinado de seus sons, pela força de seus
deuses terríveis. Alguns tardios, por virtude maior e intuição,
foram escolhidos para o risco de lembrar, avisados que estavam de
servir a língua para entender o inimigo, caso acontecesse a
necessidade de o espiar e saber de sua intenção. À Verdadeiríssima
Divindade e aos ancestrais foi pedida a piedade de jamais regressar
um branco às ilhas dos três mares. As súplicas foram feitas por
muitas estações quentes e frias, até ser impossível acreditar que
os brancos se haviam extinguido. Muitos passaram para guerrear.
Muitos atacaram os abaeté e tantos abaeté tombaram na maldade
branca. Seus nomes são entoados nos rituais para fortalecer suas
mortes. Suas mortes trarão a fúria necessária para revidar. Os mil
brancos do mundo inteiro, talvez mil dez vezes, tombariam um dia à
justiça abaeté.
Estavam
nas mãos do pajé os objectos antigos que os brancos ofertaram,
aqueles poupados da fúria e do asco da comunidade. Como esse pouco
de igarapé seco, sempre frio, parado sem movimento, onde os rostos
se mostravam límpidos. Agora, Pai Todo o escondia para deter a prova
e a ciência, mas poupando o povo ao horror. Ele explicava que, com
aquilo, o branco encarcerou o espírito do igarapé, a sua liberdade,
sua necessidade de correr para águas maiores. Quando se discutia
aquele objecto, jamais voltado a ser mostrado, meio esquecido sob um
alto de terra que o santo severamente proibia, a aldeia buscava águas
livres em seus recipientes e as dispunham pela pele e pelo chão. A
aldeia cantava e sorria às águas para desentristecê-las. Amavam as
águas que lhes matavam a sede e banhavam os corpos, as que educavam
os curumins e as curatãs, que sanavam mazelas, purificavam suas
feridas, ajustavam aos corpos em cada detalhe sem resistência. Eram
benignas. As águas limpas onde podiam mirar seus rostos eram
benignas.
Por
vezes, Pai Todo tomava o pouco de igarapé seco e o mergulhava no
imenso primeiro mar para saber se lhe ressuscitara a vontade líquida.
Julgava que, um dia, quando verdadeirissimamente fosse possível e
tivesse vontade, o igarapé seco sairia de seu cárcere para
desaguar, recuperando sua merecida alegria. Uma e outra vez, sem
ninguém, Pai Todo levava o objecto com a esperança de o libertar
como se libertaria uma ave que pudesse enfim voltar a voar.
O
lamento do santo acontecia sobretudo por desesperançar numa redenção
para o branco. Se houvesse o igarapé seco de voltar a molhar, talvez
o espírito do branco pudesse educar para a gentileza. Uma e outra
vez, sem ninguém, Pai Todo recolhia o objecto e o escondia no alto
de terra, fazendo suas orações e suplicando a intuição. A Voz
Coral nada lhe trazia. A comunidade seguia em perigo e sua dor não
tinha como ser afastada.
*
Escutando
novamente as histórias acerca do acontecimento dos brancos, Honra
perguntava:
é
verdade que as pirogas navegadas pelo animal branco são de dez
tamanhos e fogueiam e fumegam no vazio interior. De que acende esse
fogo sem acender da própria piroga. Poderá o branco acender o fogo
sem arder.
Na
sua cabeça ficava a dúvida de saber se esse fogo era a captura
prometida do relâmpago.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário