Ai!
nem sempre dormir. Três semanas depois, indo à casa de Virgília, –
eram quatro horas da tarde,– achei-a triste e abatida. Não me quis
dizer o que era; mas, como eu instasse muito:
– Creio
que o Damião desconfia alguma coisa. Noto agora umas esquisitices
nele... Não sei... Trata-me bem, não há dúvida; mas o olhar
parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite acordei,
aterrada; estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja ilusão,
mas eu penso que ele desconfia...
Tranquilizei-a
como pude; disse que podiam ser cuidados políticos. Virgília
concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e nervosa.
Estávamos na sala de visitas, que dava justamente para a chácara,
onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela aberta deixava entrar o
vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei a olhar para
as cortinas, sem as ver. Empunhara o binóculo da imaginação;
lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um mundo nosso,
em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum
outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade. Esta idéia
embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, bastava
penetrar naquela habitação dos anjos.
– Virgília,
disse, eu proponho-te uma coisa.
– Que
é?
– Amas-me?
Oh!
suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço.
– Virgília
amava-me com fúria; aquela resposta era a verdade patente. Com os
braços ao meu pescoço, calada, respirando muito, deixou-se ficar a
olhar para mim, com os seus grandes e belos olhos, que davam uma
sensação singular de luz úmida; eu deixei-me estar a vê-los, a
namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável como a
morte. A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso, que não
possuíra antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentélico,
de um lavor nobre, rasgado e puro, tranquilamente bela, como as
estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o aspecto
das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade, resumia
todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que exprimia
mudamente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o tempo urgia;
deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito nela,
perguntei-lhe se tinha coragem.
– De
quê?
– De
fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou
pequena, à tua vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa, onde te
parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja perigos para ti,
onde vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele pode
descobrir alguma coisa, e estarás perdida... ouves? perdida...
morta... e ele também, porque eu o matarei, juro-te.
Interrompi-me;
Virgília empalidecera muito, deixou cair os braços e sentou-se no
canapé. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer palavra, não
sei se vacilante na escolha, se aterrada com a ideia da descoberta e
da morte. Fui-me a ela, insisti na proposta, disse-lhe todas as
vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem aflições.
Virgília ouvia-me calada; depois disse:
– Não
escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo.
Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios de
viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; ele não chegaria
até lá; só as grandes paixões são capazes de grandes ações, e
ele não a amava tanto que pudesse ir buscá-la, se ela estivesse
longe. Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação;
murmurou que o marido gostava muito dela.
– Pode
ser, respondi eu; pode ser que sim...
Fui
até a janela, e comecei a rufar com os dedos no peitoril. Virgília
chamou-me; deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar
estrangular o marido, se o tivesse ali à mão... Justamente, nesse
instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim,
leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um
pingo de sangue. Logo que apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto
amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgília retirou-se
apressadamente da sala, onde ele entrou daí a três minutos.
– Está
cá há muito tempo? Disse-me ele.
– Não.
Entrara
sério, pesado, derramando os olhos de um modo distraído, costume
seu, que trocou logo por uma verdadeira expansão de jovialidade,
quando viu chegar o filho, o Nhonhô, o futuro bacharel do capítulo;
tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o muitas vezes. Eu, que
tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília tornou à sala.
– Ah!
respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.
– Cansado?
perguntei eu.
– Muito;
aturei duas maçadas de primeira ordem, uma na câmara e outra na
rua. E ainda temos terceira, acrescentou, olhando para a mulher.
– Que
é? perguntou Virgília.
– Um...
Adivinha!
Virgília
sentara-se ao lado dele, pegou-lhe numa das mãos, compôs-lhe a
gravata, e tomou a perguntar o que era.
– Nada
menos que um camarote.
– Para
a Candiani?
– Para
a Candiani.
Virgília
bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar de
alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se o
camarote era de boca ou do centro,consultou o marido, em voz baixa,
acerca da toilette que faria, da ópera que se cantava, e de não sei
que outras coisas.
– Você
janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves.
– Veio
para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor
vinho do Rio de Janeiro.
– Nem
por isso bebe muito.
Ao
jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos do
que era preciso para perder a razão. Já estava excitado, fiquei um
pouco mais. Era a primeira grande cólera que eu sentia contra
Virgília. Não olhei uma só vez para ela durante o jantar; falei de
política, da imprensa, do ministério, creio que falaria de
teologia, se a soubesse, ou se me lembrasse. Lobo Neves
acompanhava-me com muita placidez e dignidade, e até com certa
benevolência superior; e tudo aquilo me irritava também, e me
tornava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos
levantamos da mesa.
– Até
logo, não? perguntou Lobo Neves.
– Pode
ser.
E
saí.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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