terça-feira, 12 de setembro de 2023

Seara Vermelha | 6


Os sons da harmônica silenciavam os grilos pelo atalho. No grupo – vários homens, algumas mulheres – também silenciaram as conversas, os comentários, as risadas. Bastião começara a tocar. Era antiga e passada de moda a polca, aquele fim de mundo as coisas chegavam com muito atraso, as músicas também. Se o dr. Aureliano morasse na casa-grande talvez houvesse por lá um rádio de bateria mas o fazendeiro residia no Rio, onde se formara e tinha interesses comerciais. O coronel Inácio durante anos fizera projetos de comprar um mas ficara satisfeito com o velho gramofone de segunda mão que um sírio mascate lhe empurrara e que não tardou a quebrar a mola. Enquanto esteve funcionando sinhá Ângela passava horas inteiras, quando não estava mandando as negras na cozinha, dando corda na máquina e tocando os três únicos discos nos quais Caruso cantava trechos de ópera. Terminara pelos cantos da casa, coisa inútil, de difícil conserto. “Dinheiro jogado fora”, concluía o coronel Inácio olhando a máquina agora apenas decorativa na sala de moveis pesados da casa-grande.
Além do gramofone toda a música resumia-se nas harmônicas, nos violões e nos cavaquinhos dos colonos e trabalhadores. Perto da fazenda morava Pedro da Restinga, cego violeiro afamado, cantador de desafios, e nos tempos do coronel Inácio ele costumava vir a casa-grande nos dias de festa, tirar trovas na viola, para deleite do velho fazendeiro. Mas todas essas coisas eram do passado, depois que Inácio e Ângela morreram Pedro da Restinga teve suspensa sua conta no armazém – conta que ele não pagava nunca, espécie de esmola que o coronel lhe dava. Tinha direito de comprar toda semana feijão e farinha, uma garrafa de cachaça e um pedaço de carne-seca. Era anotado no livro mas todos já sabiam que não era para pagar, ele pagava era com suas trovas, seus versos na viola, suas rimas em ao, suas tiradas que faziam Inácio rir. Aureliano nada dissera sobre a conta de Pedro da Restinga e Artur – que passou a habitar na casa-grande – a cortou no primeiro sábado. Aquilo foi a causa inicial da antipatia que lhe votavam os trabalhadores e os colonos. No entanto Artur não se sentia culpado, ate lembrava que poderia ter cobrado a dívida que se tornara enorme no correr dos anos. Pedro da Restinga deixara de vir a fazenda e na feira do arraial – onde brilhava com sua viola e sua cuia de esmolas – cantara umas trovas onde dizia o que pensava sobre Aureliano e Artur:

Esmola pro pobre cego
que perdeu seu de comer…
........................................…
Seu Inácio era homem bom,
Don'Ana melhor não ha.
Na viola eu busco um tom
Pra sua bondade louvar.
O filho não lhe puxou
A bondade sem igual.
Em doutor já se formou
Mas aos pobres só faz mal…
Ruim que nem Satanás
Homem de mau coração,
E Artur, seu capataz
Incapaz de u'a boa ação
................................
Esmola pra um pobre cego
que perdeu seu de comer...”

Já Bastião não perdera seu pedaço de terra, aquele com que Inácio o presenteara em certa festa, contente de ter em sua fazenda um tocador de harmônica como ele. Quando do inventário, Aureliano demorara-se na fazenda e ao partir dera suas ordens. Artur lhe perguntara:
E Bastião?
O que e que ha com Bastião?
O negro estava perto, se aproximou:
Seu coronel me deu o pedaço de terra onde tá minha rocinha... – e começou a contar a história.
Mas Aureliano que ainda estava sob a emoção da morte quase simultânea dos pais, o interrompeu:
Fica com tua terra, negro.
Bastião teve vontade de pedir que ele botasse a coisa no papel. Ao velho Inácio não sentira necessidade de fazer tal pedido. A palavra do coronel era uma só, não voltava atrás. Não pediu, no entanto. Teve receio de ofender o doutor, deixou para outra vez. Vez que nunca chegou pois Aureliano deixara-se, ficar pelo Rio, era Artur quem fazia e desfazia na propriedade. Velha polca suficiente para alegrar os que iam no grupo, cercando Bastião, já no gozo da festa. Os pés do negro que levava o cavaquinho moviam-se na estrada como se ele bailasse no ritmo daquela polca antiga. O sarara conduzia um violão, mas não tocavam, nem um nem outro, porque era mestre Bastião quem estava com a harmônica e seu nome era respeitado, tocador que se lhe comparasse não havia por ali. Sua carapinha começava a embranquecer, seus dedos já não eram tão ágeis no teclado como antigamente, mas continuava igual à sua resistência, tocando noites inteiras, quanto mais bebia melhor. Os sons da polca rolavam sobre os matos e sobre os grilos, as estrelas enchiam o céu de lua cheia. Havia uma beleza densa pelos campos mas os homens nem reparavam nela, seus pensamentos estavam na festa e andavam depressa. Mais depressa que todos ia o negro do cavaquinho, vontade de apertar, nas voltas da dança, o corpo de Marta batendo os pés no chão de barro. Ia mais rápido que todos no seu passo de baile que tornava leve e elegante seu corpo enorme, seus disformes pes. Voltearia Marta ao som da música de Bastião, seria uma noite gloriosa, cabrocha bonita como aquela Deus não pusera outra no mundo. E os sons rolavam e, levados pela brisa vespertina, eram ouvidos, como um insistente e alegre convite, nas casas todas da fazenda. No silêncio em torno vibrava a harmônica nas mãos sabias de Bastião, anunciando a festa do casamento de Cosme e Teresa.
Era noite de alegria na fazenda. Não havia homem ou mulher, solteiro, casado ou amigado, que não estivesse contente, que não se reparasse para palmilhar os caminhos da casa de Ataliba. Só Gregório mastigava em silêncio sua carne-seca com pirão de água fria, pensando no milharal que ia plantar, enquanto Militão, de botinas rangedeiras, partia para a festa, o cabelo alisado a forca de brilhantina de 500 réis a lata. Também Zefa, soturna em frente aos seus santos que uma lamparina iluminava, tinha o pensamento distante da festa do casamento. Não eram festas que ela enxergava com seus olhos de medo, não eram acontecimentos felizes, não eram boas notícias as que ela tinha para dar. Via coisas terríveis, enxergava desgraças indescritíveis.
Mas eram os únicos, Zefa, Jucundina e Gregório, que não tinham o pensamento na festa e não se preparavam para ela. Os demais ou já tinham partido ou estavam trocando de roupa, lavando os pés, para ser mais fácil calçar as botinas. Só os três não ouviam os sons convidativos da harmônica que chegavam do atalho e enchiam a noite da fazenda. Porque ate os grilos silenciavam para escutar a música daquela polca. Era Bastião quem tocava e nenhum tocador como ele, ai nenhum!

Jorge Amado, in Seara Vermelha

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