E
nascerão nas suas casas espinhos e urtigas e nas fortalezas o
azevinho.
(Isaías,
XXXIV, 13)
Nem
sempre amou Petúnia. Mas não sabia de quem a tivesse amado tanto,
enquanto Petúnia.
Eles
gostavam dos jardins, dos pássaros, dos cavalos-marinhos, de suas
filhas — três louras Petúnias, enterradas na última primavera:
Petúnia Maria, Petúnia Jandira, Petúnia Angélica.
Quando
dos pequeninos túmulos, colocados à margem da estrada, saíram os
minúsculos titeus, nada mais pertencia a Éolo. Cacilda se
assenhoreara do seu talento, das suas recordações. Proibira-lhe
visitar os jazigos das meninas, levar-lhes copos-de-leite, azáleas.
Vedou-lhe o jardim, tomou-lhe o binóculo. É que apareceram os
timóteos, umas flores alegres, eméritos dançarinos. Divertiam as
miúdas Petúnias, brincando de roda, ensinando-lhes a dança,
despindo-se das pétalas. A sua nudez aborrecia Cacilda. Sem
protesto, Éolo aguardava as begônias, naquele ano ausentes.
Longa
se tornou a espera e se punha triste por andar sozinho pelo quarto
úmido. Impedido de franquear as janelas, que a esposa mandara
trancar com pregos, ele imaginava com amargura os lindos bailados dos
timóteos, a alegria das louras Petúnias. Por que Petúnia-mãe as
julgava mortas, se nada apodrecera?
A
primeira Petúnia, Petúnia Maria, filha de Petúnia Joana, levou-o a
acreditar que os dias seriam felizes.
— Chamo-me
Cacilda. Nenhuma delas se chama Petúnia — gritava a mulher. (Cacos
de vidro, perdeu-se o amor de encontro à vidraça.)
Por
que begônias? Felônia, felonia. Fenelão comeu a pedra. — Petúnia
Jandira gostava de histórias:
— Papai,
quando virão os proteus?
— Não
come a gente, são dançarinos, filhinha.
— E
os homens?
— Fenelão
comeu a pedra. Era lírico o Fenelão.
Éolo
não tinha planos para casamento, porém sua mãe pensava de outro
modo:
— Sou
rica e só tenho você. Não admito que minha fortuna vá para as
mãos do Estado. — E, irritada diante dessa possibilidade, alteava
a voz: — Quero que ela fique com os meus netos!
Vendo
que não conseguia mudar as convicções do filho, nem seduzi-lo com
a visão antecipada de possíveis descendentes, descaía para a
pieguice:
— Além
do mais, amor, quem cuidará do meu Eolinho?
O
diminutivo era o bastante para enfurecê-lo. Saía batendo portas até
seu quarto.
Periodicamente
dona Mineides promovia festinhas, enchendo a casa de moças,
esperançosa de que o rapaz casasse com uma delas. Às que reuniam,
na sua opinião, melhores qualidades para o matrimônio, insinuava
aparentando uma infelicidade um tanto fingida: “Alguém terá que
substituir-me e cuidar dele com o mesmo carinho”. — As jovens
concordavam, felizes por se tornarem cúmplices da velha.
O
filho bocejava. Ou se irritava ouvindo os gritinhos histéricos, as
perguntas idiotas, a admiração das mocinhas pelo casarão, onde o
mau gosto predominava.
Enfastiado,
esperava esvaziar-se o recinto, cessar o alvoroço das inquietas
raparigas. Terminada a festa, dona Mineides e os criados já
recolhidos aos aposentos, os pássaros invadiam as salas, voavam em
torno dos lustres, pousavam nos braços das cadeiras. Não cantavam.
Ruflavam de leve as asas, para não despertar os que dormiam, pois
jamais permitiam que outras pessoas, além dele, os vissem em seus
voos noturnos.
*
* *
Estava
Éolo, uma tarde, a soltar bolhas de sabão quando ouviu de longe a
mãe berrar:
— Éolo,
seu surdo, venha cá!
Relutou
em atender ao chamado, tal o seu desagrado pelo tom brusco com que
solicitavam a sua presença na sala.
A
velha aguardava-o impaciente. Logo que pressentiu seus passos no
corredor, avançou em direção do filho, arrastando pelas mãos uma
moça que pouco à vontade a acompanhava:
— É
ela.
Não
se lembraria em seguida de ter ouvido o nome de Cacilda, talvez pela
surpresa do encontro. O rubor subiu-lhe à face, ele que de ordinário
mostrava-se seguro de si ou indiferente no trato com as mulheres.
Ficou a contemplar em silêncio os olhos castanhos e grandes, os
lábios carnudos, os cabelos longos da desconhecida. Vagaroso,
aproximou-se dela e tomou-a nos braços. Apertou-a, a princípio com
suavidade, para depois estreitá-la fortemente. Dominado pela
sensualidade que aquele corpo lhe provocava, esqueceu-se da mãe. A
jovem mulher não se perturbou. Desprendeu-se dele e disse com
naturalidade:
— Lindos
pássaros.
Dona
Mineides olhou para os lados e nada vendo perguntou:
— Que
pássaros?
Éolo
ignorou a pergunta, já convencido de que sempre amara Petúnia,
porque na sua frente estava Petúnia.
A
mãe não presenciou o casamento. Antes de morrer, manifestou o
desejo de ver seu retrato transferido da sala de jantar para os
aposentos que iriam abrigar o casal. Petúnia apressou-se em
concordar, enquanto Éolo, consciente dos motivos que levavam a
moribunda a expressar o estranho pedido, hesitava em dar sua
aquiescência.
Casados,
os dias corriam tranquilos para os dois. A casa vivia povoada de
pássaros e cavalos-marinhos, estes trazidos pela noiva. Até o
nascimento da terceira filha nenhum atrito criara desarmonia entre
eles.
Alguns
dias após o último parto, aterrorizada, Petúnia acordou o marido:
— Olha,
olha o retrato!
Éolo
demorou a entender por que fora despertado de maneira tão repentina.
Finalmente compreendeu a razão: a maquilagem da mãe se desfazia no
quadro, escorrendo tela abaixo. Levantou-se resmungando. Com a ajuda
de batom e cosméticos retocou o rosto de dona Mineides.
— Pronto
— disse. O sorriso demonstrava sua satisfação pelo trabalho
realizado.
Petúnia
fez uma cara de nojo e virou-se para o canto.
Custou
a reencetar o sono interrompido. Por mais que tentasse esquecer a
cena, tinha o pensamento voltado para o retrato da sogra a
derreter-se, sujando a moldura e o assoalho.
A
repetição do fato nas noites subsequentes aumentou o desespero
dela.
Suplicava
ao esposo que retirasse o quadro da parede. Éolo fingia-se
desentendido. Pacientemente recompunha sempre a pintura da velha.
Houve
um momento em que Petúnia descontrolou-se:
— Como
é possível amar, com essa bruxa no quarto?
As
relações entre os dois, aos poucos, tornavam-se frias, sem que
deixassem de compartilhar a mesma cama. Quase não se falavam, os
corpos distantes, nunca se tocando. Cacilda lhe dava as costas e
entediada lia um livro qualquer. Também descuidava das filhas e
muitas vezes as evitava.
Éolo
acabava de entrar em casa, vindo da cidade, quando sentiu o corpo
tremer, afrouxarem-lhe as pernas, a náusea chegando à boca: jogadas
no sofá, as três Petúnias jaziam inertes, estranguladas.
Cambaleante, deu alguns passos. Depois retrocedeu, apoiando-se de
encontro à parede. Transcorridos alguns minutos, superou a imensa
fadiga que se entranhara nele e pôde observar melhor as filhas. Quis
reanimá-las, endireitar-lhes os pescocinhos, firmar as cabecinhas
pendidas para o lado.
Percebeu
a inutilidade dos seus esforços e rompeu-se num pranto convulsivo.
Não entendia por que alguém poderia ter feito aquilo. De repente
tudo se aclarou e saiu à procura de Cacilda. Encontrou-a sentada na
cama, segurando a cabeça nas mãos.
Inquirida
sobre o que acontecera, levantou os olhos secos na direção do
marido:
— Foi
ela, a megera. — A voz era inexpressiva, sumida. O dedo apontava o
retrato da velha a se desmanchar na tela.
Perdera
a noção de quantas horas havia dormido. O primeiro pensamento, ao
acordar, foi para as Petúnias. Seguiu até a sala e surpreendeu-se
por não vê-las no mesmo lugar. Vasculhou os aposentos. Nenhum sinal
das filhas ou da mulher. Teve o pressentimento de que tinham sido
levadas para o jardim e desceu rápido as escadas. Não transpôs a
porta. Os cavalos-marinhos obstruíam a passagem. Avançaram sobre
ele, subindo pelas suas roupas, cobrindo-lhe o rosto, os cabelos.
Recuou apavorado, a sacudir para longe os agressores.
Cacilda
retornou tarde. Não deu explicações do que se passara, nem
justificou sua ausência. Daí por diante, Éolo habituou-se às
constantes fugas da esposa, que saía de manhã e só regressava com
o sol-posto. Não dirigia uma palavra sequer ao marido, mas
aparentava tranquilidade e espelhava, às vezes, certa euforia.
Também costumava assobiar.
Por
muito tempo Éolo se absteve de sair de casa, temeroso da fúria dos
cavalos-marinhos. Impossibilitado de saber o que se passava lá fora,
através das janelas hermeticamente trancadas, vagava pelos quartos,
afogava-se na tristeza.
Quando,
por acaso, descobriu que os pequenos animais tinham o sono tão
profundo quanto o de Cacilda, a alegria lhe retornou. Bem-sucedido na
primeira tentativa de chegar ao pátio sem ser molestado, adquiriu a
confiança de que jamais seria pressentido em seus passeios noturnos.
Tão logo a esposa adormecia, escapava sorrateiro da cama,
escorregando por debaixo das cobertas. Fazia o menor ruído possível
e ao alcançar o jardim desenterrava as filhas, transferidas de seus
túmulos para um canteiro de açucenas. Elas se desvencilhavam
rápidas de suas mãos e ensaiavam imediatamente os primeiros passos
de uma dança que se prolongaria pela madrugada afora. Ao lado,
bailavam risonhos os titeus e proteus.
Em
uma das ocasiões em que se preparava para levantar-se, descuidou-se
um pouco, suspendendo demasiadamente o lençol que cobria a
companheira: no ventre dela nascera uma flor negra e viscosa.
Recém-desabrochada. Cortou-a pela haste, utilizando uma faca que
buscara na cozinha, e levou-a consigo. Caminhava sem precaução, a
esbarrar nas portas, tropeçando nos degraus.
Contudo
manteve os seus hábitos. Apenas não prestou grande atenção nos
bailados nem limpou cuidadosamente as Petúnias.
Nas
noites seguintes sempre encontrava a rosa escura presa à pele de sua
mulher. Não mais a cortava. Arrancava-a com violência e a desfazia
entre os dedos. Nervoso, descia ao jardim, para cumprir o ritual a
que se acostumara.
Mesmo
contra a sua vontade, não conseguia abandonar o leito sem descobrir
o corpo da esposa, muito menos desviar os olhos da flor. Na
impossibilidade de livrar-se daquela presença obcecante, procurou a
faca com que decepara a flor negra da primeira vez e enterrou-a em
Cacilda.
Éolo,
o olhar fixo no busto da morta, contemplava-o sem a avidez de anos
atrás. Voltou-se, por instantes, para os lábios carnudos, dos quais
desaparecera a antiga sensualidade. Ao levantar a cabeça, notou que
a maquilagem da mãe se desfizera. Recompôs a pintura e sentou
novamente na cama. O sangue ainda escorria da ferida, quando
multiplicaram as flores no ventre de Cacilda.
Carregou-a
nos braços até o quintal. Depois de alguma hesitação quanto à
escolha do local onde abriria a cova, optou por um canteiro de
couves. Cavou um buraco fundo, jogando nele o corpo. Mal o cobrira
com terra, da improvisada sepultura emergiram pétalas viscosas e
pretas. Maquinalmente foi arrancando uma a uma. Em meio à tarefa,
lembrou-se das filhas. Largou o que estava fazendo e correu para
desenterrá-las. Sentia-se extenuado, porém aguardou que elas
terminassem a dança, antes que subisse ao quarto. Jogou-se na cama
sem despir-se e adormeceu imediatamente. Não dormiu muito. Os
estalidos, que vinham do assoalho, acordaram-no. Sobressaltado, viu o
aposento atapetado de rosas negras. Urgia destruí-las, senão
passariam a outras dependências, chegariam às casas mais próximas,
levando consigo a prova do crime. E os vizinhos não deixariam de
denunciá-lo à polícia. Alarmou-se com a possibilidade de ser
encarcerado: quem cuidaria do retrato da mãe, quem retiraria da
terra as Petúnias?
Não
dorme. Sabe que os seus dias serão consumidos em desenterrar as
filhas, retocar o quadro, arrancar as flores. Traz o rosto
constantemente alagado pelo suor, o corpo dolorido, os olhos
vermelhos, queimando. O sono é quase invencível, mas prossegue.
Murilo Rubião, in Obra Completa
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