terça-feira, 5 de setembro de 2023

Os gregos o pegaram


O assassino recebeu um prêmio de consolação constrangedor ao chegar à sala e encontrar o restante deles — “o rol de bichos de estimação idiotas do Tommy”, como chamávamos. Isso para não falar dos nomes. Alguns diriam que eram sublimes; outros, ridículos. O primeiro que o homem viu foi o peixinho-dourado.
Ele olhou de soslaio para a janela e encontrou o aquário. Viu quando o peixe disparou, deu de cara no vidro e cambaleou para trás.
Suas escamas pareciam uma penugem.
Sua cauda, um ancinho dourado.
AGAMENON.
Uma etiqueta descascada na parte de baixo do aquário o apresentava com garranchos infantis e irregulares escritas com canetinha verde. O Assassino conhecia aquele nome.
Deitado no sofá detonado, entre o controle remoto e uma meia imunda, dormia um gatão cinza e bestial que atendia pelo nome de Heitor: um felino tigrado com patas pretas gigantescas e um rabo que parecia um ponto de exclamação.
Por vários motivos, Heitor era o animal mais desprezado da casa, e, mesmo com todo o calor, ele estava todo enroladinho, um C peludo e gordo, exceto pelo rabo, que parecia uma espada felpuda fincada ao corpo. Quando trocou de posição, tufos e mais tufos de pelo voaram no ar, mas o bichano continuou dormindo, plácido — e ronronante. O motorzinho ligava toda vez que alguém se aproximava. Até assassinos. Heitor nunca foi muito criterioso.
Por fim, no topo da estante de livros, jazia uma gaiola grande e larga que abrigava um pombo.
E ali ele aguardava, imóvel e austero, mas feliz.
A porta da gaiola estava completamente aberta.
Quando decidia caminhar um pouco, a cabecinha roxa balançando com muita prudência, movimentava-se num ritmo perfeito. Era isso que o pombo fazia, dia após dia, enquanto esperava para se empoleirar no ombro de Tommy.
Na época o chamávamos de Telê. Ou Tetê.
Mas nunca, em hipótese alguma, o chamávamos pelo seu enervante nome completo: Telêmaco.
Nossa, como a gente odiava Tommy por ter escolhido aqueles nomes.
A sorte dele é que todos nós entendíamos:
O garoto sabia muito bem o que estava fazendo.

***

Quando entrou na sala, o Assassino olhou ao redor.
Parecia que aquilo era tudo:
Um gato, um pássaro, um peixe-dourado, um assassino.
E, é claro, uma mula na cozinha.
Um bando nada perigoso.
Em meio àquela luz estranha e ao calor persistente, e entre os demais itens da sala — um notebook velho muito maltratado, os braços do sofá manchados de café, os livros didáticos empilhados pelo carpete —, o Assassino sentiu a presença intimidante da peça logo atrás. Só faltou ela dizer “bu!”.
O piano.
O piano.
Meu Deus, pensou ele, o piano.
Um piano vertical de madeira, todo empertigado, acomodado em um canto, com a tampa fechada e coberto por um mar de poeira:
Circunspecto e calmo, tremendamente triste.
Um piano e nada mais.
Não se engane: o instrumento poderia parecer inofensivo, mas, assim que o viu, o Assassino sentiu uma comichão no pé esquerdo. Sentiu uma dor tão forte no peito que quase fugiu em disparada pela porta.
Um momento e tanto para o primeiro pé pisar na varanda.

***

Havia uma chave, uma porta, um Rory e nenhum instante para se recompor. Todas as palavras que o Assassino poderia ter ensaiado fugiram de sua boca, e o ar já começava a lhe faltar. Sentia apenas o gosto do coração acelerado. Só conseguiu vê-lo de relance, porque o garoto disparou pelo corredor como um raio. E o pior é que o homem não conseguiu discernir quem era. Vergonhoso.
Eu ou Rory?
Henry ou Clay?
Com certeza não era Tommy. Alto demais.
Tudo que conseguiu assimilar foi o corpo que se dirigia à cozinha, de onde, naquele instante, veio um rugido alegre.
Aquiles, seu desgraçado! Cara de pau!
A geladeira abriu e fechou, e foi então que Heitor levantou a cabeça. Pulou com um baque surdo no carpete e alongou as patas traseiras daquele jeito trêmulo que os gatos fazem. Saiu andando e entrou na cozinha pelo outro lado. O tom de voz mudou no mesmo instante.
Porra, Heitor, o que você quer agora, hein, seu merdinha? Já falei: se você subir na minha cama de novo, juro que vai virar churrasquinho.
O farfalhar de um saco de pão, o som de um pote de vidro se abrindo. E então outra risada.
Aquiles, Aquiles, meu camarada...
É claro que ele não levou a mula para fora. Tommy que cuide disso, pensou. Ou melhor, eu que encontrasse o bicho dentro de casa mais tarde. Seria impagável. Pronto, decidiu-se.
Tão rápido quanto entrara, o vulto passou pelo corredor rumo à sala, a porta da frente bateu, e o Assassino se viu sozinho de novo.

***

Como é de se imaginar, levou um bom tempo para se recuperar daquele quase encontro.
Coração acelerado, respiração ofegante.
A cabeça pendeu para a frente, uma trégua para os pensamentos.
O peixe-dourado bateu a cabeça no aquário.
O pássaro ficou olhando para ele, então começou a marchar de um lado para outro como um coronel, e logo o gato retornou; Heitor adentrou a sala de estar e se sentou, esperando a cena seguinte como um espectador. O Assassino tinha certeza de que conseguia ouvir as palpitações — a fricção, o estrondo. Dava para sentir nos próprios pulsos.
Uma coisa, pelo menos, era certa.
Ele precisava se sentar.
Sem delongas, ele se instalou no sofá.
O gato lambeu o focinho e saltou.
O Assassino o flagrou em pleno ar — uma bola gorda e cinzenta de pelos e listras — e se preparou para acomodar o felino. Por um instante, ficou em dúvida: deveria acariciar o gato? Para Heitor, não fazia diferença — ele só queria ronronar no colo do estranho, inclusive afofando-o, destroçando as coxas do Assassino. Foi então que outra pessoa chegou.
Ele mal conseguia acreditar.
Eles estão vindo.
Eles estão vindo.
Os meninos estão vindo, e aqui estou eu, com o maior gato domesticado de que já se teve notícia. Era como estar preso sob uma bigorna — e uma bigorna ronronante, para piorar.

***

Quem entrou foi Henry, afastando o cabelo dos olhos e voando até a cozinha. Não achou a situação tão hilária quanto Rory, mas também não se preocupou em fazer nada.
Aquiles! De novo você aqui dentro… O Matthew vai surtar outra vez quando chegar em casa.
Até parece!
Ele abriu a geladeira e, dessa vez, se lembrou dos bons modos.
Amigão, pode chegar a cabeça pro lado só um pouquinho? Obrigado.
O ambiente foi tomado pelo tilintar de latas de cerveja sendo tiradas da geladeira e largadas numa bolsa térmica, e logo ele já estava de saída, a caminho do parque Bernborough, deixando para trás, mais uma vez, o Assassino.
O que estava acontecendo ali?
Será que ninguém era capaz de notar a presença do homem?
Não, não ia ser tão fácil assim, e o Assassino ficou ali, estatelado no sofá, contemplando os detalhes de sua invisibilidade natural. Empacado entre o alívio que aquela bênção lhe trazia e a vergonha da própria impotência, apenas se permitiu a inércia. Estava cercado por um ciclone de pelo de gato que rodopiava à luz do anoitecer. O peixinho voltou à sua batalha contra o vidro, enquanto o pombo caminhava a toda velocidade.
Ao fundo, o piano vigiava a cena.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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