domingo, 24 de setembro de 2023

O rei dos ventos


[…]
Lembro que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz ― com vontade de alegria ― como se estimasse recebendo um aviso. Demorei bom estado, sozinho, em beira d água, escutei o fife dum pássaro: sabiá ou sací. De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim.
Ele mesmo me disse, com o sorriso sentido:
Como passou, Riobaldo? Não está contente por me ver?
A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo. Ao que, pela pancada do meu coração. Aí, mas um resto de dúvida: a inteira dúvida, que me embaraçava real, em a minha satisfação. Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então, permaneci; não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavras dele. Mais falasse; retardei, limpei a goela.
A pois. Por onde andou, se mal pergunto? ― aí falei.
Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida, dita a minha nos grandes olhos, ele pronunciando!
Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou vendo. Você derradeiramente não tem passado bem?
Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!
Ao que Diadorim me deu a mão, que malamal aceitei. E ele disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho, recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiro que pegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão. Menos entendi. A real que estando ofendido, por que era que não havia de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura? Doente não foge para um recanto, no mato, solitário consigo, feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bem que criei suspeitas! aonde Diadorim não teria andado ido, e que feia ação para aprontar, com parte na fingida estória? As incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assim afetuoso, tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce. Magro ele estava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco mancava. Que vida penosa não era capaz de ter levado, tantos dias, sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com emplastros de raízes e folhas, comendo o que? Assunto de fome e toda sorte de míngua devia de ter penado. E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei ― daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim?
Além do que era sazão de sentimento sereno! arte que a vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com assanhamentos. De formas que perdi o semelhar de tantos manejos e movimentos e a certa razão das ordens que a gente cumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazer meu particípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no meio desses perigos de fato. Sendo que a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?
Ao que, com João Goanhá de testa-chefe, saímos, uns cinquenta, pegar uma tropa de cargueiros dos bebelos, que vinham ao descuidado, de noite, no Bento-Pedro ― lugar num braço de brejo, arrozal. Surpreender custou barato, bobearam as sentinelas, sem se haver um grito-de-armas, foi só pôr em fugida. Aquela carga era enorme, maior em dobro, uma riqueza ― tinha de tudo, até cachaça de pago imposto: as caixas de quarenta-e-oito garrafas cada. Ao tanto levamos os lotes de burros para esconder no Capão dos Ossos, onde tem carrascais e caminhos de caatinga pobre, com lagoas secando: as ipueiras verdolengas. Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontar nos animais. Aquilo era uma alegria. Minha alma estava: o troteio, a poeirada que levantavam, os cavalos que rinchavam bem. Acinte bebi água de de-dentro dum gravatá em flôr. Aquelas aranhas grandes armavam de árvore para árvore velhices de teia. Parecia que a guerra já tinha se terminado bem. ― Berimbáu! ― um disse ― Agora é gozar gozo... Mas. ― Ah, e Zé Bebelo? ― perguntei. Um Federico Xexéu, que vinha de recado, botava o fácil desânimo: ― Ih! Zé Bebél? Evém ele, com gentes de nuvens gentes... A desléguas, se guerreava. A gente recebia a notícia. Aí ― cavalaria chusma, arruá que chegando, aos estropes, terras arribavam: ― Eta, é?! Sendo que era não. Só era Só Candelário, de repente. Apareceu, com aqueles muitos homens.
Sús, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpo dele se encurtou pela metade. Sô Candelário. Esse era alto, trigueiro azul, quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o Hermógenes parecia um diabo coitado. Sô Candelário era o para enfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo. Se apeou, ficou um demorado tempo de costas para a gente.
Saudei o Fafafa, que era homem também dele! com os de Sô Candelário, o Alaripe e o Fafafa tinham outra vez aparecido. O Fafafa, o que ele pois então me falou, numa ocasião terrível... Ah , mas o que eu antes não contei! o do preso. Antes, como foi que se passou, como estávamos em bons escondidos, em volta da casa dum sitiante, no Timba-Tuvaca, casa caiada, casa-de-têlhas. Uns em grota, uns em altos de árvores, tinha gente até dentro de chiqueiro, na lama dos porcos. Aí chegaram os bebelos ― uns trinta? Tiroteamos na suspensão deles, os quantos que matamos, matamos, os mais fugiram sem após. Um ficou preso. Nem tinha nenhum ferimento. ― Que é que vão fazer com ele? ― eu perguntei. Será que iam matar? ― E verdade, acho que sim. Pois, amigo, a gente tem lá meios para guardar prisioneiro vivo? Se degola é da banda da direita para a esquerda... ― o que o Fafafa me respondendo. No que dizia, ele tinha razão. Mas, quem seria que ia cumprir de dar o fim naquele pobre moço? O Hermógenes? Decerto era ele. Cocei os olhos, eu queria saber e não saber. Sabia nem o nome, como se chamava o rapaz, que ia morrer, assim no meio de toda boa ordem, por necessidade nossa ― porque, se solto, ele tornava a se juntar com os outros, dar relatórios. Vim para a beira do córrego. Vendo como levavam o rapaz, como ele caminhava normal, seguindo para aquilo com seus dois pés. Essa injustiça não podia ser! Assim, os que passavam, depois que decerto iam para matar, eram outros, não vi o Hermógenes. Um , um Adílcio, com vaidade de ser capaz da maldade qualquer, pavão de penas. O outro, Luís Pajeú. Imaginado, a que iam matar o homem, lá nas primeiras árvores da capoeira, assim. Ânsia de dó, apalpei o nó na goela, ardi. Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse então eu carecia de uma realidade no real, sem divago! Ajoelhei na beirada, debrucei, bebi água com encostando a boca, com a cara, feito um cachorro, um cavalo. A sede não passava, minha barriga devia de estar inchada, igual a de um sapo, igual um saco de todo tamanho. A umas cem braças para cima, onde o córrego atravessava a capoeira, estavam esfaqueando o rapaz, e eu espiava para a água, esperando ver vir misturado o sangue vermelho dele ― e que eu não era capaz de deixar de beber. Acho que eu estava com uma febre.
Aquele grande gritar, de se estremecer. Diadorim me puxou. Só Candelário subido em sela, aforçurado regendo: a pronto ele queria o punhadão de homens, se ia para o E-Já, p ra lá do Bró, em todo o seguir. ― Vamos, Riobaldo! E para se esperar Joca Ramiro... Assim Diadorim me empurrou. Montei. Sem tento, pisei um estribo, o outro o meu pé não achava. ― Tocar ligeiro, Riobaldo! ― Diadorim me atanazando. Aquilo que lavorava em minha cabeça ― ah, mas, aí, quem é que eu vi? O rapaz, aquele, o preso, vivo e exato. Também montado num cavalo. Assim o que me contaram: que não ia morrer, não, iam matar não, Só Candelário tinha favorecido perdão a ele, por causa de sua mocidade. ― Ele é baiano, para a Bahia volta, vamos levar mais adiante, para se soltar, para lá... Me alegrei de estrelas. Conforme mais me deram explicação, aquele não oferecia perigo mais de tornar a se juntar com os outros bebelos e vir outra vez de armas contra a gente! porque se tinha providenciado de rezar nele uma reza de tirar a coragem de guerra, feito ato, mandraca de se abobar! Tudo tinha graça. Mas, e o Luís Pajeú e o Adílcio, então, do modo que vi? Pois, esses passaram com as facas-de-arrasto, mas porque iam ajudar a retalhar o porco, porção que se levava, dali, em carne e toucinhos. Ah, eu tinha bebido à-tôa gorgol dágua. Se deu galope. Me pareceu que daí adiante, a partir disso, o tudo era para só ser a desatinada doidice. Sô Candelário galopava em frente de todos. Se ia ― feito o rei dos ventos.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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