domingo, 24 de setembro de 2023

Cartas na Rua | DOIS



17

Todas as noites, quando me aprontava para sair, Joyce tinha estendido minha roupa sobre a cama. Eram as roupas mais caras que o dinheiro podia comprar. Eu nunca usava as mesmas calças, a mesma camisa, os mesmos sapatos duas noites seguidas. Havia dúzias de roupas diferentes. Eu vestia o que ela escolhesse para mim. Assim como mamãe costumava fazer.
Parecia que eu não havia progredido muito, eu pensava, e então vestia as peças.


18

Eles tinham uma coisa chamada Aula de Treinamento, o que nos dava, durante uns trinta minutos por noite, um alívio para a atividade de carimbar cartas.
Um italiano grandalhão subiu ao estrado da sala de aula para nos dizer algumas verdades.
...o fato é que não há nada como o cheiro de suor sadio e limpo, ao mesmo tempo que não há nada pior do que o cheiro de suor entranhado...
Meu bom Deus, pensei, será que estou ouvindo direito? Esse negócio certamente é sancionado pelo governo. Esse grande paspalho está me dizendo para lavar os sovacos. Não fariam isso com um engenheiro ou com um maestro. Ele está nos rebaixando.
...então tratem de tomar banho todos os dias. Vocês serão julgados tanto pela aparência quanto por sua produção.
Acho que ele queria usar a palavra “higiene” em alguma parte, mas ela simplesmente não combinava com ele.
Então ele foi até o fundo do tablado e puxou um grande mapa. E estou falando de algo descomunal. Ocupava metade do palco. Uma luz brilhou sobre o mapa. E o italiano grandalhão pegou um indicador com ponta de borracha, como se usava no primário, e apontou para o mapa:
Pois bem, estão vendo todo este VERDE? Bem, há um montão dele. Olhem!
Pegou o indicador e o esfregou pra frente e pra trás sobre a área verde.
Havia então um sentimento antissoviético mais forte do que agora. A China não tinha nem começado a alongar os músculos. O Vietnã era uma festinha de fogos de artifício. Mas ainda assim pensei, devo estar louco! Estaria ouvindo direito? Mas ninguém no auditório protestava. Precisavam do emprego. E, de acordo com Joyce, também eu precisava de um emprego.
Então ele disse:
Olhem aqui! Aí está o Alaska! E lá estão eles! É quase como se pudessem atravessar com um salto, não é mesmo?
Pode crer — disse um desmiolado na primeira fila.
O italiano soltou o mapa. Ele se enroscou rapidamente em volta de si mesmo, estalando com um rugido belicoso.
Logo o italiano avançou até a frente do tablado, apontou o indicador com ponta de borracha em nossa direção.
Quero que vocês entendam que temos que segurar as pontas. Quero que entendam que CADA CARTA QUE CARIMBAREM, CADA SEGUNDO, CADA MINUTO, CADA HORA, CADA DIA, CADA SEMANA, CADA CARTA EXTRA QUE VOCÊS CARIMBAM AJUDA A DERROTAR OS RUSSOS! Bem, isso é tudo por hoje. Antes que saiam, cada um de vocês receberá sua designação com o esquema.
Designação com o esquema. O que era isso?
Alguém surgiu distribuindo essas folhas.
Chinaski? — ele disse.
Sim?
Você fica com a zona 9.
Muito obrigado — eu disse.
Não tinha noção do que eu estava dizendo. A zona 9 era a maior da cidade. Alguns caras ficavam com zonas bem pequenas. Era o mesmo que enfrentar aqueles pacotes de sessenta centímetros em 23 minutos — eles iam simplesmente despejando o negócio em cima de você.

19

Na noite seguinte, ao transferirem o grupo do prédio principal para o de treinamento, parei para conversar com Gus, o velho jornaleiro. Houve um tempo em que Gus chegou a ser o terceiro no ranking dos meio-médios, mas nunca conseguiu lutar pelo campeonato. Ele atacava pela esquerda e, como você sabe, ninguém gosta de lutar com um canhoto — é preciso fazer todo um novo treinamento. Para que se dar o trabalho? Gus me levou para dentro e bebemos uns goles de sua garrafa. Então tentei alcançar o grupo.
O italiano estava esperando junto à porta. Percebeu que me aproximava. Encontrou-me na metade do caminho.
Chinaski?
Diga lá!
Você está atrasado.
Eu não disse nada. Caminhamos juntos em direção ao prédio.
Estou a um passo de lhe dar uma bela advertência.
Ah, por favor, não faça isso, senhor! Por favor — eu disse enquanto caminhávamos.
Muito bem — ele disse —, vou deixar passar desta vez.
Obrigado, senhor — eu disse, e nós entramos.
E quer saber de uma coisa? O filho da puta tinha nhaca.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

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