Foi
em Lisboa — não me lembro quem nem onde terá sido —, mas alguém
questionou-me sobre o porquê do meu interesse pela escrita, o porquê
de escolhê-la como profissão. A minha resposta: Quando aqui
cheguei, na segunda metade dos anos 1990, o choque cultural não foi
significativo. Trazia comigo a vantagem da língua e da similaridade
de valores culturais e religiosos. Tirando uma ou outra
característica comportamental, não havia muito a assinalar que
pudesse alimentar um conflito cultural entre nós, africanos, e eles,
os brancos, nativos. O único problema residia na pele: quanto mais
escura, maiores as dificuldades de integração. A cor tornava
palpável a pressão sociocultural sob a qual viviam os pretos, nas
periferias dos grandes centros urbanos, entre dois mundos: a África
umbilical, da saudade, do sonho e do orgulho de pertença, e
Portugal, da adoção, da esperança, do desconhecido e da
necessidade.
Na
altura, o que mais me entusiasmou em Lisboa foi o fato de, pela
primeira vez, me ter questionado sobre a minha existência, o que me
faz homem, filho e, claro, preto. E que lugar melhor do que Lisboa
para se iniciar um inquérito sobre identidade. Não imaginam o gozo
que me dava, e ainda dá, identificar a carapinha, as ancas fartas, a
pele morena ou moura, se preferirmos, nesse nobre povo que me deu as
boas-vindas em pleno inverno, mas cuja africanidade, ainda que só
celebrada de forma efusiva em São Bento (a décima ilha do
arquipélago de Cabo Verde), foi suficiente para me fazer sentir em
casa. Além de que me ajudou a dissipar aquele que era o nosso maior
medo, o racismo. Um não problema, um não dito, que apenas ouvíamos,
sentindo, nas entrelinhas, entre as sílabas engolidas na fala
daqueles que nos recebiam. Era quase imperceptível, diria até que
era preciso mesmo estar bastante atento para identificar um ato
racial direto, salvo, claro, as vezes que gritavam “preto, vai para
a tua terra!”, de fugida, no anonimato de uma janela de um bairro
pacato na mais africana das capitais europeias.
À
medida que fui me sentindo mais em casa, fui me apercebendo do quão
pouco sei sobre os pretos. Sendo africano e conhecendo muitos iguais
a mim, vivendo na mesma condição de imigrante que eu, nunca me
ocorreu levantar as questões que, de repente e de forma tão
pertinente, começaram a surgir. Optei, então, por ver alguns
documentários e ler alguns livros. Há um que me deixou
particularmente sensibilizado e, claro, passo a recomendar —
Lisboa, na cidade negra, de Jean-Yves Loude — um
estrangeiro, como sempre… até parece um cliché irritante, mas
repete-se há tanto tempo que nos resignamos e aceitamos que a nossa
história será sempre “melhor” contada por um alguém de fora —,
por me introduzir lugares de uma cidade que me era familiar, lugares
que frequentava, e por me apresentar personagens que eu conseguia
identificar, algumas até com quem havia privado, mas que, pela
proximidade ou pelo hábito de estar com elas, nunca havia
questionado sobre isso de ser preto e sê-lo em Portugal.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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