segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Homem, filho e preto


Foi em Lisboa — não me lembro quem nem onde terá sido —, mas alguém questionou-me sobre o porquê do meu interesse pela escrita, o porquê de escolhê-la como profissão. A minha resposta: Quando aqui cheguei, na segunda metade dos anos 1990, o choque cultural não foi significativo. Trazia comigo a vantagem da língua e da similaridade de valores culturais e religiosos. Tirando uma ou outra característica comportamental, não havia muito a assinalar que pudesse alimentar um conflito cultural entre nós, africanos, e eles, os brancos, nativos. O único problema residia na pele: quanto mais escura, maiores as dificuldades de integração. A cor tornava palpável a pressão sociocultural sob a qual viviam os pretos, nas periferias dos grandes centros urbanos, entre dois mundos: a África umbilical, da saudade, do sonho e do orgulho de pertença, e Portugal, da adoção, da esperança, do desconhecido e da necessidade.
Na altura, o que mais me entusiasmou em Lisboa foi o fato de, pela primeira vez, me ter questionado sobre a minha existência, o que me faz homem, filho e, claro, preto. E que lugar melhor do que Lisboa para se iniciar um inquérito sobre identidade. Não imaginam o gozo que me dava, e ainda dá, identificar a carapinha, as ancas fartas, a pele morena ou moura, se preferirmos, nesse nobre povo que me deu as boas-vindas em pleno inverno, mas cuja africanidade, ainda que só celebrada de forma efusiva em São Bento (a décima ilha do arquipélago de Cabo Verde), foi suficiente para me fazer sentir em casa. Além de que me ajudou a dissipar aquele que era o nosso maior medo, o racismo. Um não problema, um não dito, que apenas ouvíamos, sentindo, nas entrelinhas, entre as sílabas engolidas na fala daqueles que nos recebiam. Era quase imperceptível, diria até que era preciso mesmo estar bastante atento para identificar um ato racial direto, salvo, claro, as vezes que gritavam “preto, vai para a tua terra!”, de fugida, no anonimato de uma janela de um bairro pacato na mais africana das capitais europeias.
À medida que fui me sentindo mais em casa, fui me apercebendo do quão pouco sei sobre os pretos. Sendo africano e conhecendo muitos iguais a mim, vivendo na mesma condição de imigrante que eu, nunca me ocorreu levantar as questões que, de repente e de forma tão pertinente, começaram a surgir. Optei, então, por ver alguns documentários e ler alguns livros. Há um que me deixou particularmente sensibilizado e, claro, passo a recomendar — Lisboa, na cidade negra, de Jean-Yves Loude — um estrangeiro, como sempre… até parece um cliché irritante, mas repete-se há tanto tempo que nos resignamos e aceitamos que a nossa história será sempre “melhor” contada por um alguém de fora —, por me introduzir lugares de uma cidade que me era familiar, lugares que frequentava, e por me apresentar personagens que eu conseguia identificar, algumas até com quem havia privado, mas que, pela proximidade ou pelo hábito de estar com elas, nunca havia questionado sobre isso de ser preto e sê-lo em Portugal.

Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas

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