quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Falamos de carambolas

Falamos sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado um ótimo, de carambola.
Não sei que graça você acha em carambola.
Falamos sobre carambola, discutimos sobre carambola; passamos a romã e finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o jambo cor-de-rosa, este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as mangas, a manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma carlotinha.
Lembrei a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um dia telefonou: "Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer molho pardo..." achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais: — Vem... tem manga carlotinha...
Manga carlotinha? Mentira!
E a moça foi. Refugaria talvez promessa de casamento, se irritaria com o presente de jóia, mas como resistir a um homem que tem galinha ao molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite tão familiar?
Ela não achou muita graça na história. Aliás não simpatizava com aquele amigo meu.
Ficamos um instante em silêncio. Comecei a mexer o gelo dentro do copo com o dedo.
É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; inclusive, para falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a pergunta, ergui os olhos e fiz: — Mas, afinal, o que foi que o médico disse?
E ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras do médico, principalmente uma: Sindroma... teve uma dúvida: — É síndroma ou sindroma?
Eu disse francamente que não sabia; apenas tinha a impressão de que a palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.
Em todo o caso — juntei — não era bem uma doença; era um conjunto de sintomas... eu falava assim não para mostrar sabença, mas para mostrar incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até uma certa indiferença por essas coisas de palavras.
Confessei-lhe que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou muito seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não tivesse apenas duas letras e não fosse terra de Abraão ou cidade da Caldéia: UR. Se os charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria a capital teria de ser UR. Eu falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo, quando tem uma doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.
Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.
Não é pessimismo não. É...
Senti que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo estaria perdido se ela pronunciasse aquele nome; seria intolerável.
Você sabe muito bem o que é.
Chamei o garçom, pedi mais um uísque e mais um Alexander's.
Sabe quem eu vi hoje?
Era ela que mudava de conversa; senti um alívio. E falamos, e falamos... Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a testa, sua graça tocante. Era insuportável pensar que alguém assim pudesse estar condenada. Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.
Acho que o bale russo precisa se renovar...
Ela achava que não era justo falar em virtuosidades acrobáticas; o que havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a beleza do bale puro... E no meio da discussão me chamou de literato; mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivesse dito uma vez: — Foi uma pena você não ter estudado bale.
Pensava no seu corpo de pernas longas, na linha dura das ancas, nos seios pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou por beber tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora está horrível.
Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?
Ela riu, e deu uma risada tão alegre como antigamente.
Como as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre, tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.

MINHA FRASE CÉLEBRE — Até eu já posso posar como ladrão de frase. É que certa vez escrevi: Nasci, modéstia a parte, em Cachoeiro de Itapemirim — mas escrevi parodiando declaradamente uma letra de Noel Rosa sobre Vila Isabel. A letra de Noel foi esquecida por muita gente, e várias vezes, através dos anos, encabulei ao ganhar elogios pela “minha” frase. O remédio é a gente silenciar, “pondo a modéstia de parte”, como dizia o bom Noel. Afinal ele escreveu tanta coisa bonita que com certeza não se importaria muito com este pequeno furto. Em todo caso, Noel, desculpe o mau jeito.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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