Já
vou dormir, não vou dormir.
No
silente Caminho Novo,
sete
tiros da carabina.
Eu
nada escuto do meu quarto.
Ninguém
escuta, de tão longe.
Mas
adivinho sete tiros
estampados
na noite fria.
É
João Pupini festejando
seu
natalício italiano,
atirando
contra as estrelas
o
chumbo gaio de estar vivo.
É
João Pupini ameaçando
o
sono azul do município,
o
equilíbrio e a paz do mundo.
Já
se eriça, irado, o bigode
marcial
de Guilherme 2o.
O
czar, o king George, Francisco
José
e mais altas potências
protestam
contra o despropósito
de
João Pupini fazer anos
declarando
guerra mundial.
O
delegado de polícia,
sentinela
internacional,
convoca
seu destacamento:
“Eia,
sus, ao Caminho Novo,
a
prender o guerreiro doido,
que
além de ser mau elemento
vota
sempre na oposição”.
Sua
casa logo arrombada
a
coronha, facão e ombro,
João
Pupini dá o sumiço
pelos
fundos de treva e brejo,
embolado
mais a família,
pois
lutar contra a Força Pública,
nem
o ousara Napoleão.
Mas
é preso nos vãos atalhos
em
que zaranza atarantado,
e
recolhido à enxovia
o
formidando atirador.
Nem
Deus te salva, João Pupini!
(fico
cismando, no sem sono
de
carabina, junho e noite.)
Solitário,
incomunicável,
Pupini
diz: “Vou suplicar
à
autoridade justiciosa
o
direito de fazer anos
e
jovialmente celebrá-lo”.
Mas
retrucam-lhe: “Assine e sele
petição
na forma da lei”.
Onde
papel, no úmido escuro
do
xadrez todo enxadrezado
de
feros ferros e ferrolhos?
Onde
estampilha, Deus do céu,
se
só uma barata sela,
no
chão da cela, madrugada,
a
prova de estar acordada?
Sem
requerer, como provar
que,
entre mil mortos e feridos
pela
arma-fúria de Pupini,
estão
todos salvos, tranquilos?
Como
explicar ao Presidente,
a
Hermes, Pinheiro, Jangote,
que
ninguém fez mal a ninguém?
Tiro
de noite é novidade
na
cidade sem distração
e
noite por demais comprida?
O
rádio está por inventar,
a
televisão, nem se fala.
Quem
tem fogo vai despejá-lo
na
horta gelada, por que não?
Ainda
há dias, rente ao quartel,
no
rancho insone do Thiers,
tiros
sem alvo pipocaram,
ninguém
foi preso, até foi bom
ouvir
alguém vencer o tédio
detonando
a salva nervosa
que
infundia vida ao mar morto.
Mas
João Pupini, suspeitado
(suspeita,
não: certeza plena)
de
sorrir para os perdedores
da
eleição presidencial;
João
ruísta, João subversivo,
João
celebrar seu nascimento
a
poder de bala, o bandido?
Lá
dorme João no chão sem lã.
Estou
sentindo: a poucos passos
da
cadeia ali bem em frente,
e
dormirá tempos e luas,
se
ruístas alvoroçados
não
soltarem pelas quebradas
o
latino grito: Habeas corpus.
(Que
só mais tarde entenderei.
Por
enquanto, perto de mim,
algo
se passa, impercebido,
como
sempre se passam coisas
no
deserto Caminho Novo
ou
neste
menino peito ansioso.)
Carlos Drummond de Andrade, in Boitempo – Esquecer para lembrar
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