Estávamos
vendo tevê quando decidimos assaltar o dentista.
— O
dentista? — perguntei ao meu irmão.
— Claro,
por que não? — Foi a resposta que ouvi. — Você sabe quanto
dinheiro entra numa clínica dessas durante o dia? Chega a ser
obsceno. Se o primeiro-ministro fosse dentista, o país não estaria
do jeito que está agora, sério. Não haveria desemprego, nem
racismo, nem machismo. Só dinheiro.
Certo.
Concordei
com meu irmão, Ruben, só para deixá-lo feliz. A verdade é que ele
estava apenas se exibindo. Um de seus piores hábitos.
Essa
era a primeira verdade, mas tinha outra.
A
segunda era que, mesmo que tivéssemos decidido assaltar o dentista,
nunca faríamos isso. Até agora, nesse ano, tínhamos prometido
assaltar a padaria, o hortifrúti, a loja de ferragens, a lanchonete
e o oftalmologista. Nunca aconteceu.
— E
desta vez, falo sério. — Rube sentou-se na ponta do sofá. Deve
ter percebido o que eu estava pensando.
Não
íamos roubar nada.
Éramos
casos perdidos.
Casos
perdidos, deprimentes, patéticos, do tipo que não se olha duas
vezes.
Eu
mesmo tinha um emprego como entregador de jornais duas vezes por
semana, mas fui despedido depois de quebrar a janela da cozinha de um
cara. Mas nem joguei com força. Só aconteceu. A janela estava
aberta pela metade, eu joguei o jornal, e tum!, direto no vidro. O
sujeito saiu de casa correndo furioso e começou a me xingar enquanto
eu ficava parado lá com lágrimas ridículas nos olhos. O trabalho
acabou. Dera errado desde o início.
Meu
nome é Cameron Wolfe.
Moro
na cidade.
Frequento
a escola.
Não
sou popular com as garotas.
Tenho
um pouco de juízo.
Não
tenho muito juízo.
Meu
cabelo é grosso e cheio, e não é comprido, mas sempre parece estar
bagunçado, e está sempre arrepiado, por mais que eu me esforce para
baixá-lo.
Meu
irmão mais velho, Ruben, sempre me mete em encrenca.
E
eu arrumo tanto problema para o Rube quanto ele para mim.
Tenho
outro irmão, que se chama Steve. E o mais velho e o vencedor da
família. Já teve algumas namoradas, tem um bom emprego, e é dele
que muita gente gosta. E, para completar, também é bom jogador de
futebol americano.
Tenho
uma irmã chamada Sarah, que fica sentada no sofá com o namorado, e,
sempre que pode, deixa ele meter a língua na garganta dela. Sarah é
a segunda mais velha.
Meu
pai está sempre mandando o Rube e eu tomar mos banho porque acha que
parecemos sujos e fedemos feito animais selvagens que rastejam na
lama.
— Não
estou fedendo porra nenhuma! — grito para ele. — E tomo banho
quase toda porra de dia! — Bem, já ouviu falar de sabão?... Olha,
já tive a sua idade e sei como os caras costumam ser porcos.
— Tá
falando sério? — Claro que estou. Senão, não falaria. Não
adianta discutir.
Minha
mãe fala pouco, mas é a mais corajosa na nossa casa.
Tenho
uma família, sim, que não funciona muito bem sem molho de tomate.
Gosto
do inverno.
Sou
assim.
Ah,
e, claro, no momento em que estou contando tudo isso, nunca, nem
sequer uma vez, roubei qualquer coisa na vida. Só conversei sobre
isso com o Rube, exatamente como naquele dia, na sala.
— Dá
licença.
Rube
deu um tapa no braço de Sarah, quando ela beijava o namorado no
nosso sofá.
— Dá
licença. Nós vamos assaltar o dentista. Sarah parou.
— Como
é que é? — perguntou.
— Ah,
deixa pra lá. — Rube desviou o olhar. — Essa família é ou não
é inútil? Tem gente ignorante por toda parte, que só se importa
consigo mesma.
— Ah,
para de reclamar — falei para ele.
Ele
me fitou. Foi tudo o que fez, enquanto Sarah voltou a se agarrar com
o namorado.
Então,
desliguei a tevê, e saímos. Fomos dar uma olhada na clínica que
íamos “aliviar”, como dizia Rube. (A verdadeira razão para
irmos até lá é que simplesmente tínhamos que sair de casa, porque
Sarah e o namorado estavam se atracando na sala, e nossa mãe
preparava cogumelos na cozinha, e a casa inteira estava fedendo.)
Aquela merda de cogumelo de novo — falei, quando saímos para a
rua.
— Pois
é — disse Rube, dando um sorrisinho. — É só afogar no molho de
tomate de novo que dá pra comer.
— Com
certeza. Que bebês chorões.
— E
aqui está ela. — Rube abriu um sorriso, quando atravessamos a rua
principal, na atmosfera escura de junho, em pleno inverno. — Doutor
Thomas G. Edmunds. Cirurgião-dentista.
Maravilha.
Começamos
a planejar.
Nossos
planos consistiam nas perguntas que eu fazia e nas respostas que ele
dava. Era mais ou menos assim: — Não vamos precisar de uma arma ou
coisa parecida? Ou uma faca? Perdemos aquela nossa faca de mentira.
— Não
perdemos. Ela está atrás do sofá.
— Tem
certeza? — Sim. Tenho certeza... em todo caso, não vamos precisar
dela. Tudo de que a gente precisa é de um bastão de críquete, e
vamos pegar o taco de beisebol do vizinho, está bem? — Deu uma
risada muito irônica. — Vamos balançar essas gracinhas algumas
vezes, e ninguém vai poder dizer não.
Certo.
Certo.
É.
Está certo.
Deixamos
tudo marcado para a tarde seguinte. Tínhamos o bastão e o taco,
repassamos tudo que precisávamos lembrar e sabíamos que ninguém ia
fazer aquilo. Até o Rube sabia disso.
De
qualquer forma, fomos ao dentista no dia seguinte e, de todos os
nossos assaltos, pela primeira vez, nós realmente entramos.
Ao
entrar, levamos um susto, porque, atrás do balcão da recepção,
estava a auxiliar de dentista mais linda que alguém já viu. Estou
falando sério. Ela escrevia alguma coisa com a caneta, e eu não
conseguia tirar os olhos dela. Esqueça o taco de beisebol que eu
estava segurando. Nem me lembrei dele. Não ia ter assalto. Só
ficamos parados ali, Rube e eu.
Rube
e eu, e a auxiliar de dentista, na sala, juntos.
— Falo
com vocês em um segundo — disse ela com delicadeza, sem erguer os
olhos.
Deus
pai, ela era linda. Sério. Uma beleza.
— Com
licença — murmurou Rube para ela, bem baixinho. Ele queria ter
certeza de que só eu estava escutando. — Com licença... isso é
um assalto.
Ela
não ouviu.
— Maldita
vaca idiota.-Olhou para mim, balançando a cabeça. — Não dá mais
pra assaltar nem um dentista. Caramba. Que mundo é esse em que
vivemos? — Bem. — Finalmente, ela ergueu os olhos. — O que
posso fazer por vocês, garotos? — Hã... — Eu estava inquieto,
mas o que mais podia dizer? Rube não abriu a boca. Fez-se silêncio.
Eu tinha de quebrá-lo. Sorri e perdi o autocontrole. — Hã, viemos
fazer um check-up.
Ela
retribuiu o sorriso.
— Qual
é o melhor dia para vocês? — Hum, amanhã? — As quatro, está
bem? — Está. — Fiz que sim com a cabeça, pensando naquilo.
Ela
fixou os olhos em mim. Direto em mim. Aguardando. Prestativa.
— Então,
qual é o nome de vocês? — Ah, claro — respondi, rindo feito um
idiota. — Cameron e Ruben Wolfe.
Ela
anotou, sorriu mais uma vez e então olhou para o bastão de críquete
e o taco de beisebol.
— Só
estávamos treinando um pouco — falei, erguendo o taco de beisebol.
— Em
pleno inverno?
— Não
dá pra comprar uma bola — interrompeu Rube. Tínhamos uma em algum
lugar do quintal. Ele me empurrou até a porta. — A gente volta
amanhã.
Ela
deu um sorriso do tipo feliz-por-poder-ajudar e disse: — Está
certo, tchauzinho.
Fiquei
mais um segundo e respondi: — Tchau. Tchau.
Não
dava para pensar em coisa melhor?
— Seu
retardado de uma figa — disse Rube, assim que voltamos para a rua.
— Check-ups — resmungou. — Tudo bem que o coroa quer que a
gente cheire feito rosa, mas ele não está a fim de mandar limpar os
dentes da gente. Não está nem um pouco preocupado com os nossos
dentes!
— Bem,
pra começar, quem foi que meteu a gente lá, hein? De quem foi a
grande ideia de assaltar o dentista? Não foi minha, cara!
— Está
bem, está bem. — Rube se apoiou na parede. Os carros passavam
devagar por nós.
— E
que diabos foi aquela história de ficar cochichando? Agora, com ele
apoiado na parede, eu estava decidido a tirar aquilo a limpo.
— Você
só se esqueceu de pedir por favor. Talvez ela tivesse ouvido. Com
licença, isto é um assalto — imitei, murmurando. — Totalmente
patético.
Rube
me interrompeu.
— Está
bem! Estraguei tudo... Mas eu também não vi você balançando o
taco de beisebol. — Assim era melhor para o Rube, pois tínhamos
voltado a discutir o que eu havia feito de errado em oposição ao
que ele fizera. — Você não balançou nada, cara... Estava muito
ocupado fitando os grandes olhos azuis da Loura, e olhando pra ela e
prós peitos dela.
— Eu,
não. Peitos.
Quem
ele queria enganar? Falando desse jeito.
— Isso
mesmo — comentou Rube, continuando a rir. — Vi você, seu filho
da mãe safado.
— Isso
é mentira.
Mas
não era. Caminhando pela rua principal, eu sabia que estava
apaixonado pela bela e loura auxiliar de dentista. Já estava
fantasiando ficar deitado na cadeira do dentista com ela por cima de
mim, no meu colo, perguntando: — Está confortável, Cameron? Está
se sentindo bem? — Ótimo. — Seria a minha resposta. — Ótimo.
-Ei.
— Ei!
— Rube me deu um empurrão. — Você ainda está me ouvindo? Virei
na direção dele. Ele continuava falando.
— Então,
por que não me diz que diabos vamos fazer pra arranjar dinheiro prós
check-ups, hein? — Pensou cerca de um minuto quando então voltamos
a andar e ele apertou o passo para casa. — Não, melhor
desmarcarmos.
— Não
— respondi. — Nada disso, Rube.
— Safado
— foi a resposta dele. — Esqueça a auxiliar. Ela deve estar
dando pro Sr. Dr. Dentista enquanto estamos conversando.
— Não
fale assim dela — censurei.
Rube
parou de caminhar mais uma vez. Então me encarou.
Depois
disse: — Você é um lixo, sabia? — Eu sei. — Só me restou
concordar. — Acho que você está certo.
— Como
sempre.
Seguimos
em frente. De novo. Com o rabo entre as pernas.
Ah,
por falar nisso, não desmarcamos.
Pensamos
em pedir o dinheiro para os nossos pais, mas eles iam querer saber
por que, para começo de conversa, fomos parar lá, e uma discussão
dessa natureza não estava na ordem do dia. Consegui o dinheiro de
que precisava, tirando do meu esconderijo no canto estragado do
tapete, em nosso quarto.
Voltamos.
Fiz
o máximo que podia para baixar o meu cabelo. Por causa da auxiliar.
Voltamos
lá no dia seguinte.
Não
deu certo. O lance do cabelo.
Voltamos
lá no dia seguinte, e havia um tipo de auxiliar de dentista grotesca
ali, com cerca de 40 anos.
— Agora
tem alguém do seu tipo — cochichou Rube para mim, na sala de
espera. Ele sorria como o cara safado que sempre foi. Me dava nojo,
mas, como costumava acontecer, eu sentia nojo de mim mesmo.
— Ei
— falei, erguendo um dedo. — Acho que você tem alguma coisa
presa aí no dente.
— Onde?
— Ele entrou em pânico. — Aqui? — Abriu a boca e deu um
sorriso amplo. — Já saiu?
— Não,
mais pra direita. Por aí. — Claro que não havia nada ali, e,
quando ele olhou para o próprio reflexo no aquário da sala de
espera e descobriu, virou e me deu um tapa na nuca.
— Hum.
— Retomou o fio da meada. — Garoto safado. — Soltou uma
risadinha. — Mas tenho que admitir. Ela era boa. Era realmente boa.
— Hummm.
— Nada
parecida com a gorda de meia-idade aqui, hein? Dei uma gargalhada.
Garotos como nós (garotos em geral) tinham que ser a escória da
Terra. Na maior parte do tempo, pelo menos. Juro, passamos a maior
parte do tempo sendo desumanos.
Precisamos
de um bom pontapé na bunda, como o coroa sempre diz (e dá).
Ele
está certo.
A
auxiliar entrou.
Muito
bem, quem vai ser o primeiro? Todos em silêncio.
Então,
Eu.
Fiquei
de pé. Decidi que seria melhor acabar logo com aquilo.
No
fim, não foi tão ruim assim. Foi só esse tal de tratamento de
flúor, que tinha um gosto bem comum, e raspar um pouco dentro da
boca, que foi o que o cara grandão fez. Sem broca. Não para nós.
Não há justiça nesse mundo.
Ou
talvez haja...
No
fim das contas, foi o dentista quem nos roubou. Era bem careiro,
mesmo pro pouco que fez por nós.
— Todo
aquele dinheiro — falei, quando saímos novamente.
— E,
ainda assim — enfim, não era o Rube quem estava reclamando —,
sem broca. — Deu um soco no meu ombro. — Imagina só. Ficar sem
biscoitos de chocolate. Serve pra alguma coisa, isso, sim. Bom pras
presas... Nossa mãe é um gênio.
Discordei.
— Nada
disso. Ela só é durona.
Rimos,
mas sabíamos que mamãe era brilhante. Só o papai que nos dava
preocupação.
Voltamos
para casa, e não tinha muita coisa acontecendo. Sentimos cheiro de
sobras de cogumelos aquecendo no fogão, e Sarah estava mandando ver
no sofá de novo.
Não
adiantava entrar.
Fui
para o quarto que eu e Rube dividimos e observei a cidade que
espalhava seu hálito sujo no horizonte. Por trás dela, o sol era de
uma cor amarelo-clara, e os edifícios se assemelhavam às patas de
imensas feras negras deitadas.
Sim,
estávamos em meados de junho agora, e o tempo começava a piorar.
Não
sei realmente se essa história tem um monte de coisas acontecendo.
Na verdade, não tem. É só uma narrativa de como foram as coisas na
minha vida, durante o último inverno. Acho que aconteceram coisas,
mas nada fora do normal. Não consegui ter o antigo emprego de volta.
Meu pai me deu uma chance. Meu irmão mais velho, Steve, torceu o
tornozelo, me xingou pra caramba e, finalmente, começou a entender
alguma coisa.
Minha
mãe organizou uma luta de boxe no gabinete da assistente social da
nossa escola e ficou tão perturbada uma noite que acabou jogando o
lixo orgânico aos meus pés, na cozinha. Minha irmã, Sarah, levou
um pé na bunda. Rube deixou a barba crescer e, enfim, acordou para
algumas coisas. Greg, um cara que já tinha sido meu melhor amigo, me
pediu trezentas pratas para salvar a vida dele. Conheci uma garota e
me apaixonei por ela (na época, eu podia me apaixonar por qualquer
coisa que demonstrasse interesse). Tive um monte de sonhos
esquisitos, doentios, pervertidos e, algumas vezes, bonitos. E
sobrevivi.
Nada
demais aconteceu.
Tudo
estava normal.
PRIMEIRO
SONHO:
Fim
de tarde, estou indo até a clínica e vejo alguém de pé no
telhado. Quando me aproximo, percebo que é o dentista. Concluo isso
por causa do jaleco branco e do bigode. Está bem na beirada e parece
prestes a se jogar de lá. Paro debaixo dele e grito: — Com
licença! Que diabos o senhor está fazendo? — O que você acha? Ao
ouvir isso, não sei o que responder. Tudo que posso fazer agora é
correr para dentro da galeria onde fica o consultório, entrar e
contar para a auxiliar bonita.
— O
quê?
— É
a resposta dela.
Meu
Deus, ela parece tão linda que quase digo: — Para o diabo com o
Senhor Dentista, vamos para a praia ou algo assim. — No entanto,
não digo nada. Apenas corro até o fim de um corredor, abro a porta
e subo alguns degraus em direção ao telhado.
Por
alguma razão, quando chego à beirada, a auxiliar de dentista não
está comigo.
Quando
fico de pé, próximo ao dentista melancólico com bigode, e olho por
cima da borda, ela está de pé, lá embaixo, tentando lhe pedir que
desça.
— O
que você está fazendo aí — grito para ela.
— Eu
não vou subir aí! — responde ela. — Tenho medo de altura!
Acredito
no que diz, porque, sinceramente fico bastante satisfeito em poder
olhar para as pernas e para o corpo dela, e sinto uma pontada no
estômago sob a minha pele.
— Vamos,
Tom! Ela tenta negociar com o dentista. — Vamos, desça. Por favor!
— Bem,
e por falar nisso, o que você está fazendo aqui? — pergunto a
ele.
Ele
vira o rosto para mim.
Inocente.
Então,
diz: — É por sua causa.
— Por
minha causa! Que diabos eu fiz?
— Cobrei
a mais de você.
— Cara,
isso não foi legal. — De repente, por sadismo, eu o incentivo. —
Vamos, pula, então. Você merece, seu filho da mãe vigarista.
E
agora até a bela auxiliar de dentista quer que ele pule. Ela grita:
— Vamos, Tom, eu pego você!
E
acontece.
Caindo.
Caindo.
Ele
pula e cai, e a bela auxiliar o segura, beija-lhe a boca e o coloca
com delicadeza no chão. Ela o abraça, encostando o corpo no dele.
Ah, o uniforme branco se esfregando nele. Fico maluco e, no mesmo
instante, quando ela grita para que eu também pule, me jogo e caio…
Na
cama, ao acordar, fico deitado com o gosto de sangue na boca e com a
lembrança da calçada e do impacto na minha cabeça.
Markus Zusak, in O Azarão
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