Oswald
de Andrade construiu toda uma filosofia da vida, e uma teoria
sociológica, para justificar o exercício de sua tendência ao
sarcasmo. Apelidou isso de antropofagia, e viu no homem um ser
devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e
psicologicamente, quanto mais deglute o seu semelhante. No dia em que
o ser humano deixa de comer o próximo, a civilização entra em
decadência, e se instalam, com o patriarcado, o messianismo e os
valores burgueses em geral. Oswald era contra a escravidão, porque
esta importa em explorar o adversário, que deve ser comido, e não
posto a ferros. Os devorados não contam, mas os devoradores
implantarão a cultura da liberdade, de que já surgem os primeiros
indícios.
No
subsolo dessa doutrina, havia apenas o gosto de Oswald pela sátira,
que é a manducação simbólica. De resto, gosto bem curioso, pois
coincidia com a capacidade de admiração, que o escritor aplicava a
esse ou àquele confrade, mas alternadamente, em intervalos de
impulso destrutivo, de uma incoerência por assim dizer cronometrada,
que era uma das atrações de seu espírito.
Viajando-se
mais longe ainda em sua personalidade, o ser corrosivo cede lugar,
imprevistamente… a quem? a um menino sentimental, que queria ser
mimado apesar de suas inconsequências, e que adorava o gesto de
carinho. Tive ocasião de surpreendê-lo (ou de surpreender-me) numa
noite de abandono e confidência, em que pude verificar como
geralmente a sua agressividade era forma de defesa, compensação
pelo agravo recebido, ou que supunha tal. A grande queixa de Oswald
com relação a seus companheiros de aventura literária era que o
omitiam sempre. E porque o omitissem, passava à ofensiva mais rude.
Às vezes, atacava antes da omissão, como se a previsse. Pelo menos
se persuadia de que não era injusto. Dessem-lhe carinho, e o homem
cheio de alfinetes e ácidos se aveludava. E quando encontrou
carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo depois de outros
que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa
felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa
construção antropofágica, levantada em quase trinta anos de
orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.
Uma
linha de coerência se esboça através dos zigue-zagues de sua vida.
Ora espiritualista ora marxista, criando um dia o Pau-Brasil, e logo
buscando universalizá-lo em antropofagia, primitivo e civilizado a
um tempo, como observou Manuel Bandeira, solapando o edifício
burguês sem renunciar à habitação em seus andares mais altos,
Oswald manteve sempre intata sua personalidade, de sorte a provocar,
ainda em seus últimos dias, a irritação ou a mágoa que inspirara
quando fauve modernista de 1922. Os rapazes que vinham para a
literatura com a preocupação excessiva de purezas ou aristocracias
verbais (no fundo, variantes tardias de parnasianismo) pretendiam
ignorá-lo ou negar-lhe a força, mas uma fisgada mais hábil desse
sexagenário (que se dizia sex-appealgenário) lhes doía na
pele, e talvez mais fundo; e como é preferível hoje em dia viver
com todo mundo, principalmente com os marimbondos, acabavam se
aproximando dele, e procurando conquistá-lo.
O
marimbondo enternecia-se (pelo menos provisoriamente), e nada mais
divertido que as listas sucessivas de talentos jovens, que Oswald,
vingador contumaz, costumava estabelecer para indicar onde se
depositavam suas esperanças de uma cultura antropofágica
brasileira.
Não
houve, no modernismo, personagem mais viva do que ele. Manteve até o
fim, quando outros “heróis” do movimento se haviam acomodado ou
haviam evoluído, uma atitude tipicamente modernista, não isenta de
sabor, sobretudo notável porque implicava o culto à indisciplina e
ao desrespeito, que infelizmente não caracteriza os moços de hoje.
Tinha algo de Jarry, inventor do Ubu Roi e do Surmâle.
E seu Serafim Ponte Grande é uma dessas criações que a
gente não esquece, pela violência rabelaisiana de sátira, a
destruir um mundo de atitudes e ideias que merece realmente ser
espandongado.
Vamos
sentir falta de Oswald, e também saudade.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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