quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Hollywood | 24


Sarah e eu decidimos visitar novamente o gueto. Como ainda tínhamos o velho fusca, decidi ir nele até lá.
Uma vez lá, parecia o mesmo, a não ser por um velho colchão deixado no meio da rua, que tivemos de contornar.
Todo o lugar tinha a aparência de uma aldeia bombardeada. Nesse dia não havia ninguém à vista. Era como se, a um sinal, todos tivessem se escondido. Mas eu sentia uma centena de olhos em cima da gente. A porta tinha cinco buracos de balas. Algo novo.
Tornei a bater.
Sim? – ouvi a voz de Jon.
É Hank e Sarah. Nós ligamos. Estamos aqui.
Oh...
A porta abriu-se.
Entrem, por favor...
François Racine estava à mesa com sua garrafa de vinho.
A vida não vale nada – ele disse.
Jon passou a corrente na porta. Sarah correu os dedos pelos buracos de bala.
Vejo que tiveram cupins...
Jon deu uma risada.
Oh, sim... sentem-se...
Pegou alguns copos e nos sentamos. Ele serviu o vinho.
Outro dia estupraram uma garota no capô do meu carro. Cinco ou seis deles. Nós protestamos. Eles ficaram furiosos. Passaram-se alguns dias, e aí, uma noite, estávamos sentados aqui e bang, bang, bang, bang, bang, as balas passaram através da porta. Depois ficou tudo em silêncio.
Ainda estamos vivos – disse François. – Nos sentamos e bebemos vinho.
É só um blefe – disse Jon. – Querem que a gente se mude. Eu me recuso a mudar.
Um dia não poderemos nos mudar mais – disse François.
Eles têm mais armas que a polícia – disse Jon – e disparam mais.
Vocês deviam sair daqui – disse Sarah.
Está brincando? Alugamos este lugar por três meses adiantados. Perderíamos toda a grana.
É melhor perder nossas vidas? – perguntou François.
Conseguem dormir à noite? – perguntei.
Temos de beber pra dormir. E mesmo assim nunca se tem certeza. Essas barras nas janelas talvez não signifiquem grande coisa. O vizinho também tem. Outra noite, estava jantando sozinho e lá estava um cara parado atrás dele com uma arma. De alguma forma, entrara pelo telhado. Tem uma espécie de passagem lá por cima. Eles estão embaixo e em cima da casa. Ouvem tudo que a gente diz. Estão escutando agora.
Quatro fortes batidas ressoaram no assoalho.
Estão vendo?
François saltou e bateu com o pé no chão.
QUIETOS! QUIETOS! QUE TIPO DE DEMÔNIO SÃO VOCÊS?
Silêncio lá embaixo. Acho que só queriam nos informar que estavam lá.
François tornou a sentar-se.
Toda essa coisa é aterrorizante – disse Sarah.
Eu sei – disse Jon. – Roubaram nossa TV, mas a gente não precisa de TV por aqui.
Eu achava que isto era só um gueto negro – eu disse –, mas vi alguns hispanos da última vez...
Oh, sim – disse Jon – temos uma das piores gangues mexicanas aqui, a V-66. Pra pertencer a ela o cara tem de ter matado alguém.
Fez-se uma longa pausa.
Como vai indo o filme? – perguntei, para quebrar o silêncio.
A produção está rolando. Eu estou lá todo dia, trabalhando muitas horas com o pessoal. Em breve estaremos rodando. À medida que cada dia passa, que a Firepower investe mais dinheiro, o filme se torna mais realidade. Mas dá merda de todo tipo todo dia.
Como, por exemplo? – perguntou Sarah.
Bem, fomos alugar a câmera...
Vocês alugam a câmera?
É. Assim, fomos alugar uma câmera e a empresa disse que não alugava pra nós.
Por quê? – perguntei, dirigindo-me à janela para dar uma olhada no fusca.
A Firepower não pagou o último aluguel. A empresa insistiu em que a Firepower lhe desse um cheque visado pelo uso da última câmera e pelo aluguel da que a gente queria usar.
Eles deram?
Deram.
François levantou-se.
Vou contar as galinhas – disse, e saiu.
François não tem medo desse tipo de vida? – perguntou Sarah.
Não – disse Jon –, ele está louco. Outro dia estava sentado aqui sozinho, e ergueu os olhos e viu dois caras parados ali. Um deles tinha uma faca. “Passa o dinheiro!”, disse o cara. “Não”, disse François, “você passa o seu!” Estava bêbado, e pegou a vara e começou a bater nos dois com ela. Eles saíram correndo e François correu atrás deles pela rua abaixo gritando: “FIQUEM LONGE DE MINHA CASA! VÃO À CASA DE OUTRO. E NÃO ROUBEM MINHAS GALINHAS!”. Correu atrás deles a rua toda.
Podiam ter matado ele.
Ele está louco demais pra ver isso.
Tem sorte de estar vivo – disse Sarah.
É. Mas eu acho que o fato de ser francês, e não americano, ajuda. Isso confunde eles, pois não sentem o mesmo ódio que sentem por um americano. Sentem que ele é doido, e nem todos esses caras são assassinos. Alguns são simplesmente humanos tentando se virar.
Não são todos humanos? – perguntou Sarah.
Humanos demais – respondeu Jon.
François entrou.
Contei minhas galinhas. Ainda estão todas lá. Conversei com elas. Conversei com minhas galinhas.
Sentou-se. Jon encheu o copo dele.
Eu quero um castelo – disse François. – Quero seis filhos e uma esposa grande e gorda.
Pra que quer isso tudo? – perguntei.
Pra quando perder no jogo alguém conversar comigo. Agora, quando eu perco, ninguém conversa comigo.
Eu queria sugerir que quando ele perdesse no jogo talvez uma esposa gorda e seis filhos tampouco conversassem com ele. Mas não sugeri. François já sofria bastante.
Em vez disso, eu disse:
A gente precisa ir ao hipódromo juntos um dia desses.
QUANDO? – ele perguntou.
Breve.
Eu tenho um novo sistema.
Todos temos.
Aí o telefone tocou. Jon atendeu na terceira chamada.
Alô...
Sim... sim, aqui é Jon.
Como? Mas isso não pode ser!
Olhou-nos, ainda segurando o fone.
Desligou...
Quem?
Jon pôs o fone no gancho. Ficou ali parado.
Era Harry Friedman...
E...?
E o filme foi cancelado – respondeu.

Charles Bukowski, in Hollywood

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