Ui!
lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples, como
era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas
depois da morte de minha mãe.
No
sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda,
alguns livros, roupa, charutos, um moleque, – o Prudêncio do
capitulo 11, – e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade.
Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não
podia nem queria obedecer-lhe.
Sabina
desejava que eu fosse morar com ela algum tempo – duas semanas, ao
menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um
bom rapaz este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora
comerciava em gêneros de estiva, labutava de manhã até à noite,
com ardor, com perseverança. De noite, sentado à janela, a
encaracolar as suíças, não pensava em outra coisa. Amava a mulher
e um filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois.
Diziam que era avaro.
Renunciei
tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou
a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e
mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. - “Que bom que é estar
triste e não dizer coisa nenhuma!” – Quando esta palavra de
Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco,
um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito
ainda mais cabisbaixo do que a figura, - ou jururu, como dizemos das
galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma
sensação única, uma coisa a que poderia chamar volúpia do
aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão,
leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes
concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e
daquele tempo.
Às
vezes caçava, outras dormia, outras lia, - lia muito, – outras
enfim não fazia nada; deixava-me atoar de ideia em ideia, de
imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta. E
as horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite
velavam a montanha e a cidade.
Ninguém
me visitava; recomendei expressamente que me deixassem só. Um dia,
dois dias, três dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer
palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me
ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias, estava farto da
solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o
uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu.
Reagia
a mocidade, era preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da
morte, os hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as
gravatas, e ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que
uma pessoa do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa
roxa, situada a duzentos passos da nossa.
– Quem?
– Nhonhô
talvez não se lembre mais de Dona Eusébia...
– Lembra-me...
E ela?
– Ela
e a filha. Vieram ontem de manhã.
Ocorreu-me
logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os
acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fora impossível
evitar as relações Intimas do Vilaça com a irmã do sargento-mor;
antes mesmo do meu embarque, já se boquejava misteriosamente no
nascimento de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer depois que o
Vilaça, ao morrer, deixara um bom legado a Dona Eusébia, coisa que
deu muito que falar em todo o bairro. O próprio tio João, guloso de
escândalos, não tratou de outro assunto na carta, aliás de muitas
folhas. Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma
não dessem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça,
e o beijo da moita; finalmente, nenhumas relações estreitas
existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei de
fechar o baú.
– Nhonhô
não vai visitar sinhá Dona Eusébia? perguntou-me o Prudêncio. Foi
ela quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.
Lembrei-me
que a vira, entre outras senhoras, por ocasião da morte e do
enterro; ignorava porém que ela houvesse prestado a minha mãe esse
derradeiro obséquio. A ponderação do moleque era razoável; eu
devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente, e descer.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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