Fiquei
melhor amigo do Prata sem que ele soubesse. Li o livro Douglas e
outras histórias, presente do Fernando Caruso, amigo meu que já
era melhor amigo do Prata sem que ele soubesse. Não parecia que eu
tinha lido o livro, parecia que eu tinha sentado num bar com o Prata
e ele tinha me contado o livro inteiro. E falando assim parece que
foi chato, mas não foi. Foi muito legal. Tanto é que a gente ficou
melhor amigo à primeira vista. Sem que ele soubesse, é claro.
Eu
reconheci nele o melhor amigo que me faltava desde que eu e meu então
melhor amigo começamos a ver outras pessoas, porque a relação se
desgastou, muito pela questão da presença física. Não demorei a
perceber uma coisa: quando você não conhece uma pessoa, é muito
pouco provável que você e ela briguem. O grande problema de uma
amizade é você conhecer a outra pessoa. Durante anos, cultivei essa
amizade platônica, que é um tipo de ligação que eu recomendo.
Tive
algumas oportunidades de conhecê-lo, mas preferi não chegar às
vias de fato, porque isso poderia abalar nossa relação. Vai que ele
tem um metro e noventa. Eu não posso andar do lado de um cara de um
metro e noventa. Eu sou muito criterioso em relação à altura das
pessoas com quem eu ando. Na amizade platônica, a pessoa tem a
altura que você quiser. Você só tem os benefícios da amizade, sem
aquela obrigação de ir ao chá de panela, ou liberar no Candy
Crush. Caso vocês estejam se perguntando, ele não é meu único
amigo platônico. Tenho alguns deles, como o Paul McCartney e o Fred
do Fluminense. Mas o Prata era o mais íntimo, mesmo.
Percebam
que eu já chamava ele de Prata como se eu o conhecesse. Sim, porque
chamar pelo sobrenome é sinônimo de intimidade. Parece que você
estudou na escola dele e tinha vários Antonios e ele acabou ficando
conhecido como o Prata. Quando a pessoa quer fingir que é amiga de
alguém logo chama pelo sobrenome. “Eu tava tomando um chope com a
Dilminha.” Eu duvido que alguém chame a Dilma de Dilminha. Agora,
se alguém disser: “Eu tava tomando um chope com a Rousseff”, as
pessoas vão falar: “Caramba, ele é amigo da Dilma”. Se bem que
não. Porque acho que ela não toma chope. E eu não vejo por que
alguém iria tirar essa onda. Péssimo exemplo. Mas resumindo: fomos
muito amigos, eu e o Prata. E durou um tempo. E foi bom enquanto
durou.
Até
o dia em que a Companhia das Letras sugeriu que a gente lançasse o
livro juntos. E me mandaram o livro Nu, de Botas. E descobri
que a gente não era melhor amigo. A gente era a mesma pessoa. Li as
memórias dele com a impressão estranhíssima de que eram as minhas
memórias. E eu garanto que isso vai acontecer com você também. Por
mais louca e específica que tenha sido a vida do Prata, por mais
louca e específica que tenha sido a sua vida, quando o Prata fala da
vida dele, parece que é a sua vida, parece que ele é e sempre foi
você.
Resultado:
o livro me fez rir e chorar e depois rir de novo do ridículo que foi
chorar no aeroporto e chorar pelo ridículo que é ficar rindo e
chorando no aeroporto e acabar perdendo o voo e pensar: que bom, vou
poder rir e chorar mais um pouquinho. Volta e meia tinha que fechar
as páginas e lembrar da minha própria vida, pra não misturar com a
vida dele (na verdade não fechava as páginas porque recebi o livro
como um arquivo pdf por e-mail e li no celular mesmo, mas “fechava
as páginas” é muito melhor do que “fechava o aplicativo”).
Entrei no voo com o “livro” nas mãos e li até o momento em que
a aeromoça me pediu pra “desligar” o livro. Fiz o que todo o
mundo faz. Apertei o botão em cima do celular mas não tempo o
bastante pra desligá-lo. Assim que ela virou, liguei o livro de novo
e continuei a ler.
Cheguei
no Rio determinado a terminar essa relação platônica. Em primeiro
lugar, porque é muito narcisismo você ser melhor amigo de você
mesmo. Em segundo lugar, porque a gente estava para se conhecer. E
poucas amizades platônicas resistem ao conhecimento do objeto
“amigado”.
Aí
a gente se conheceu. E parecia que a gente já se conhecia há muito
tempo. Porque a gente já se conhecia mesmo. E tem coisas que a
amizade platônica não pode te dar. Ele tem um e sessenta e nove,
igualzinho a mim. Na verdade ele tem um e sessenta e oito e mente que
tem um e sessenta e nove. Igualzinho a mim. Viva a amizade. A
platônica, e as outras.
Gregório Duvivier, in Put some farofa
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