Como
é que ousaram me dizer que eu mais vegeto que vivo? Só porque levo
uma vida um pouco retirada das luzes do palco. Logo eu, que vivo a
vida no seu elemento puro. Tão em contato estou com o inefável.
Respiro profundamente Deus. E vivo muitas vidas. Não quero enumerar
quantas vidas dos outros eu vivo. Mas sinto-as todas, todas
respirando. E tenho a vida de meus mortos. A eles dedico muita
meditação. Estou em pleno coração do mistério. Às vezes minha
alma se contorce toda. Tenho uma amiga que tem cálculos renais. E,
quando uma pedra quer passar, ela vive o inferno até que passe.
Espiritualmente, muitas vezes uma pedra quer passar, então eu me
contorço toda. Depois que ela passa, fico toda pura. É mentira
dizer que a gente não pode ser ajudada. Sou ajudada pela mera
presença de uma pessoa vivendo. Sou ajudada pela saudade mansa e
dolorida de quem eu amei. E sou ajudada pela minha própria
respiração. E há momentos de riso ou de sorriso. De alegria, a
mais alta. Uma pessoa um dia escreveu-me: eu te deixaria por Deus. Eu
entendo. Será que essa pessoa já pôde me deixar e me trocar por
Deus? Ou tem saudade de mim? Creio que tem saudade de mim e que por
momentos é possuída por Deus. No momento em que escrevo, minha
nudez é casta. E é bom escrever: é a pedra passando enfim.
Entrego-me toda a esses momentos. E possuo a minha morte. Já tenho
uma grande saudade dos que eu deixarei. Mas estou tão leve. Nada me
dói. Porque estou vivendo o mistério. A eternidade antes de mim e
depois de mim. O símbolo do mistério é em Vila Velha, Paraná: ela
é de antes do aparecimento do homem na Terra. O silêncio que devia
haver naquele tempo não habitado. A energia silenciosa. De tempo que
sempre existiu. O tempo é permanente. Nunca terminará. Não é
lindo isso? Também tenho outra pedra, ainda mais antiga: os geólogos
chegaram à conclusão de que vem da época da formação da Terra. O
Brasil é muito antigo. Seus vulcões já estão extintos. Interrompi
um instante de escrever para pegar nessa pedra e entrar em comunhão
com ela. Deram-me também um pequeno diamante: parece uma gota de luz
na palma de minha mão. Tenho fortes tentações e fortes desejos.
Para superar tudo isso, passo 40 dias no deserto. Tenho junto de mim
um copo de água. De vez em quando tomo um gole. Assim estou saciando
todas as minhas sedes. Vou agora ensinar um modo hindu de se ter paz.
Parece brincadeira mas é verdade. É assim: que se imagine um buquê
de rosas brancas. Que se visualize sua brancura macia e perfumada.
Depois, que se pense num buquê de rosas vermelhas, príncipe
negro: são encarnadas, apaixonadas. Depois, que se visualize um
buquê de rosas amarelas, que são, como já escrevi, um grito de
alarme alegre. Depois, que se imagine um buquê de rosas rosadas, no
seu recato, pétalas grossas e aveludadas. Depois, que mentalmente se
reúnam esses quatro grandes buquês numa enorme corbelha. E,
finalmente, que se tire cor-de-rosa, talvez, por ser tão recatada na
sua palidez e por ser a rosa por excelência, e que se a leve
mentalmente a um jardim e se a reponha no seu canteiro. Os hindus
conseguem paz com essa mentalização. Penso na Índia, que
provavelmente nunca conhecerei. Mas a fome não espiritualiza
ninguém. Só a fome deliberada. Está chovendo, são quatro horas da
madrugada. O vento sacode as portas fechadas de meu terraço. Mas meu
corpo está quente. Era para eu sentir frio, mas estou quente e viva.
Hoje de tarde vou ter um encontro muito importante. Respeito
profundamente a alma de quem eu vou encontrar. E essa pessoa me
respeita muito. Talvez seja um encontro em silêncio. Mandaram-me de
Minas Gerais uma carta: nela estava desenhado o meu rosto e o homem
dizia que me amava com mudo fervor. Eu respondi dizendo que todo
fervor é mudo. E agradeci eu ser o objeto desse fervor. O desenho é
muito bom. Pergunto-me se esse homem me conheceu pessoalmente, de
quando eu estive em Belo Horizonte dando uma conferência. É um
desenho mais fiel do que uma fotografia. E quem é Gilberto? Que me
mandou um desenho em que apareço de corpo inteiro, com um cigarro na
mão. Ao lado, Gilberto escreveu o título de livros meus e desenhos
alusivos aos títulos. E, ao lado direito, muito juvenilmente,
Gilberto escreveu: “Linda! Fascinante! Fatal!” Gilberto, não
existe gente fatal, só no cinema mudo. O desenho também é muito
bom. Você me conheceu pessoalmente, Gilberto? Desculpe, mas não me
lembro de você. E você só assinou “Gilberto”, não mandou no
envelope nenhum endereço, é por isso que estou respondendo aqui.
Para tornar o encontro de hoje de tarde alegre vou me vestir muito
bem e me perfumar. E, se falarmos, serão palavras de alegria. Que
perfume usarei? Acho que já sei qual. Não digo que perfumes eu uso:
são o meu segredo. Uso perfume para mim mesma. Estou lembrando de
meu pai: ele dizia que eu era muito perfumada. Meus filhos também
são. É um dom que Deus dá ao corpo. Humildemente agradeço. E um
dia talvez eu vá à Índia. Farei talvez um empréstimo no Banco e
terei dinheiro para ir e ficar uma semana lá. Terei coragem de ir
sozinha? É preciso que eu tenha o endereço de alguém lá que me
guie. Eu gostaria tanto de ir... Vou terminar agora porque tenho um
espaço determinado neste jornal. Vou ler um pouco. Sobre diamantes.
Numa revista italiana que diz: “Tra le pietre prezíose é la
piú bella, la piú ricercata, é l’idea stessa di pietra
preziosa.”
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Nenhum comentário:
Postar um comentário