quarta-feira, 26 de julho de 2023

Piloto de Guerra | XVI


É pesada a nossa experiência de estrada! Às vezes, temos por missão dar uma olhada, numa mesma manhã, sobre a Alsácia, a Bélgica, a Holanda, o norte da França e o mar. Mas a maior parte dos nossos problemas é terrestre e nosso horizonte, mais frequentemente, encolhe até se limitar ao engarrafamento de um cruzamento! Assim, faz três dias somente que vimos ruir, Dutertre e eu, a vila em que morávamos.
Eu nunca me livrarei, provavelmente, dessa lembrança viscosa. Dutertre e eu, por volta das seis horas da manhã, deparamos, saindo de nossa casa, com uma desordem inexprimível. Todas as garagens, todos os galpões, todos os celeiros vomitaram nas ruas estreitas as engenhocas mais disparatadas, os carros novos e as velhas carroças que havia cinquenta anos dormiam, obsoletas, na poeira, as charretes de feno e os caminhões, os ônibus e os basculantes. Daria para encontrar, nessa feira, procurando-se bem, até diligências! Tudo quanto era caçamba sobre rodas foi exumada. Dentro delas despejam os tesouros das casas. Esses são carregados para os carros em trouxas perfuradas de hérnias, amontoados de qualquer jeito. E já não se parecem com mais nada.
Eles compunham o perfil da casa. Eram os objetos de um culto de religiões particulares. Cada um no seu lugar, tornados necessários pelos hábitos, embelezados pelas lembranças, valiam pela pátria íntima para cuja fundação contribuíam. Mas os julgaram preciosos por si mesmos, os arrancaram de sua lareira, de sua mesa, de sua parede, os empilharam confusamente, e já não passam de objetos de bazar que demonstram seu desgaste. As relíquias piedosas, se as empilharmos, enojam!
Alguma coisa já se decompõe diante de nós.
Vocês estão loucos, aqui! O que está acontecendo?
A dona do café aonde nós vamos dá de ombros: evacuamos.
Por quê? Meu Deus!
A gente não sabe. O prefeito disse.
Ela está muito ocupada. Precipita-se pela escadaria. Nós contemplamos a rua, Dutertre e eu. A bordo dos caminhões, dos carros, carroças, charretes de banco, é uma mistura de crianças, colchões e utensílios de cozinha.
Os carros velhos, principalmente, estão lastimáveis.
Um cavalo em bom estado entre as padiolas de uma charrete dá uma sensação de saúde. Um cavalo não exige peças de reposição. Uma charrete se conserta com três pregos. Mas todos esses vestígios de uma era mecânica! Esses conjuntos de pistões, válvulas, bobinas e engrenagens, até quando vão funcionar?
Capitão, o senhor poderia me ajudar?
Claro. Com o quê?
A tirar meu carro da garagem…
Eu a olho, estupefato:
A senhora não sabe dirigir?
Oh! Na estrada, vai dar. É mais fácil…
Estão ela, a cunhada e as sete crianças…
Na estrada! Na estrada ela avançará vinte quilômetros por dia em etapas de duzentos metros! A cada duzentos metros, terá de frear, parar, desengatar, engatar, mudar de marcha na confusão de um engarrafamento inextricável. Ela vai quebrar tudo! E a gasolina, que vai faltar! E o óleo! E a água que ela vai esquecer:
Cuidado com a água. Seu radiador está vazando feito uma peneira!
Ah! O carro não é novo…
A senhora precisaria andar oito dias… Como vai conseguir?
Não sei…
A menos de dez quilômetros daqui, ela terá já abalroado três carros, arranhado a embreagem, furado os pneus. Então ela, a cunhada e as sete crianças começarão a chorar. Então ela, a cunhada e as sete crianças, submetidas a problemas acima de suas forças, renunciarão a decidir sobre o que quer que seja e vão sentar-se à margem da estrada para esperar um pastor. Mas os pastores… Faltam pastores, barbaramente! Nós assistimos, Dutertre e eu, a iniciativas de carneiros. E esses carneiros se vão numa balbúrdia formidável de material mecânico. Três mil pistões. Seis mil válvulas. Todo esse material range, raspa e bate. A água ferve em alguns radiadores. É assim que começa a andar, laboriosamente, essa caravana condenada! Essa caravana sem peças de reposição, sem pneus e sem gasolina, sem mecânicos. Que demência!
A senhora não poderia ficar em casa?
Ah! Bem que a gente preferia ficar em casa!
Então por que partir?
Disseram…
Quem disse?
O prefeito.
Sempre o prefeito.
Claro. Todo mundo preferia ficar em casa.
Exato. Nós não respiramos aqui uma atmosfera de pânico, mas uma atmosfera de fardo cego. Dutertre e eu aproveitamos para sacudir uns e outros:
É melhor o senhor desembarcar tudo isso. O senhor ao menos beberá a água das fontes.
Certeza que faríamos melhor.
Mas vocês são livres.
Ganhamos a partida. Um grupo se formou. Escutam-nos. Balançam a cabeça em aprovação.
Tem razão, o Capitão!
Discípulos repercutem o que digo. Converti um acantonado que se mostra mais ardente do que eu:
Eu sempre falei! Chegando na estrada, vamos comer pedra.
Eles conversam. Estão de acordo. Ficarão. Alguns se afastam para pregar aos outros. Mas voltam desencorajados:
Não adianta. Somos obrigados a partir também.
Por quê?
O padeiro foi embora. Quem vai fazer o pão?
A cidade já debandou. Furou aqui e acolá. Tudo vai correr pelo mesmo buraco. Sem esperanças.
Dutertre tem sua ideia:
O drama é que fizeram os homens acreditar que a guerra era anormal. Antigamente, ficavam em casa. A guerra e a vida se misturavam…
A dona do café reaparece. Ela arrasta um saco.
Vamos decolar em uma hora. A senhora tem um pouco de café?
Ah! Pobres moços…
Ela enxuga os olhos. Ah! Ela não chora por nós. Nem por si mesma. Ela já chora de esgotamento. Ela já se sente tragada pela penúria de uma caravana que, a cada quilômetro, desmoronará um pouco mais.
Mais longe, no acaso dos campos, de tempos em tempos, caças inimigos voando baixo lançarão uma rajada de metralhadoras sobre esse lamentável rebanho. O mais surpreendente, porém, é que, normalmente, eles não insistem. Alguns carros ardem, mas pouco. E poucos mortos. É uma espécie de luxo, alguma coisa como um conselho. Ou o gesto de um cão que morde a canela para acelerar o rebanho. Aqui, é para semear a desordem. Mas então, por que essas ações locais, esporádicas, de pouco efeito? O inimigo faz pouco esforço para dispersar a caravana. É verdade que esta não precisa dele para desmoronar. A máquina desregula-se espontaneamente. A máquina é concebida para uma sociedade tranquila, calma, que dispõe de todo o seu tempo. A máquina, quando o homem não está mais ali para remendar, regular, lubrificar, envelhece num ritmo vertiginoso. Esses carros, esta noite, parecerão ter mil anos.
Parece-me assistir à agonia da máquina.
Aquele ali toca seu cavalo com a majestade de um rei. Entroniza-se, deslumbrado, em seu banco. Suponho, aliás, que ele tenha tomado um trago:
O senhor parece contente!
É o fim do mundo!
Sinto um surdo mal-estar ao pensar que todos esses trabalhadores, todas essas pessoas humildes, de funções tão bem definidas, qualidades tão diversas e tão preciosas, não passarão, esta noite, de parasitas e vermes.
Vão espalhar-se nos campos e devorá-los.
Quem vai alimentá-los?
A gente não sabe…
Como abastecer os milhões de emigrantes perdidos ao longo das estradas, onde se anda de cinco a vinte quilômetros por dia? Se houvesse abastecimento, seria impossível encaminhá-lo!
Essa mistura de humanidade e sucata me faz lembrar o deserto da Líbia. Morávamos, Prévot e eu, numa paisagem inabitável, vestida de pedras escuras que brilhavam ao sol, uma paisagem recoberta por uma casca de ferro.
E considero esse espetáculo com uma espécie de desespero: uma nuvem de gafanhotos que cai no macadame vive muito tempo?
E vocês vão esperar que chova para beber?
A gente não sabe…
Sua cidadezinha, havia dez dias, era incansavelmente atravessada por refugiados do norte. Eles assistiram, durante dez dias, àquele inesgotável êxodo. Chegou a vez deles. Tomam seus lugares na procissão. Oh! Sem confiança:
Eu preferia morrer em casa.
Todos preferíamos morrer em casa.
E é exato. A vila inteira desmorona como um castelo de areia, quando ninguém desejava partir.

Se a França possuísse reservas, o encaminhamento dessas reservas seria radicalmente impedido pelo engarrafamento das estradas. É possível, a rigor, apesar dos carros quebrados, carros imbricados uns nos outros, nos inextricáveis cruzamentos, descer com o fluxo, mas como trazê-lo de volta?
Não há reservas — diz-me Dutertre —, o que resolve tudo…
Corre o boato de que, desde ontem, o governo proibiu as evacuações de vilas. Mas sabe Deus como as ordens se propagam, pois não há mais circulação possível na estrada. Quanto às linhas telefônicas, estão congestionadas, cortadas ou sob suspeita. E não se trata de dar ordens. Trata-se de reinventar uma moral. Ensina-se aos homens, há mil anos, que mulheres e crianças devem ser poupadas da guerra. A guerra diz respeito aos homens. Os prefeitos conhecem bem essa lei, e seus adjuntos, e os professores. Bruscamente, eles recebem ordem de proibir as evacuações, isto é, de obrigar mulheres e crianças a permanecerem sob os bombardeios. Precisariam de um mês para reajustar a consciência a esses novos tempos. Não se derruba de uma só vez todo um sistema de pensamento. Todavia, o inimigo avança. Assim, os prefeitos, seus adjuntos, os professores soltam seu povo na grande estrada. O que é preciso fazer? Onde está a verdade? E lá se vão esses carneiros sem pastor.

Não tem um médico aqui?
O senhor não é da vila?
Não. A gente vem mais do norte.
Para que um médico?
É que a minha mulher vai parir na carroça…
Entre os utensílios de cozinha, no deserto daquela sucata universal, como sobre um espinheiro.
O senhor não tinha como prever isto!
Faz quatro dias que estamos na estrada.
Pois a estrada é um rio imperioso. Onde parar? As vilas que ele varre, umas após as outras, esvaziam-se de si mesmas, como se desembocassem, por sua vez, no esgoto comum.
Não, não tem médico. O do Grupo está a vinte quilômetros.
Ah! Bom!
O homem enxuga o rosto. Tudo se deteriora. Sua mulher dá à luz no meio da rua, entre utensílios de cozinha. Nada disso é cruel. É, primeiro, antes de tudo, monstruosamente fora do humano. Ninguém se lamenta, as lamentações não têm mais significado. A mulher dele vai morrer, ele não lamenta. É assim. Trata-se de um sonho ruim.
Se, ao menos, a gente pudesse parar em algum lugar…
Achar em algum lugar uma verdadeira vila, uma verdadeira pousada, um verdadeiro hospital… Mas evacuam também os hospitais, sabe Deus por quê! É uma regra do jogo. Não se tem tempo de reinventar as regras. Achar em algum lugar uma morte verdadeira! Mas não há mais morte verdadeira. Há corpos que se deterioram, como os automóveis.
E sinto em todo lugar uma urgência decrépita, uma urgência que renunciou à urgência. Foge-se à razão de cinco quilômetros por dia, de tanques que avançam, através dos campos, mais de cem quilômetros, e de aviões que se deslocam a seiscentos quilômetros por hora. Assim se derrama o xarope quando se derruba a garrafa. A mulher desse aí vai parir, mas ele dispõe de um tempo desmesurado. É urgente. E não é mais. Está suspenso em equilíbrio instável entre a urgência e a eternidade.
Tudo se fez lento como os reflexos de um agonizante. Trata-se de um imenso rebanho que patina, exausto, diante do abatedouro. São eles cinco, dez milhões abandonados na rua? É um povo que patina de cansaço, de tédio, na soleira da eternidade.
E, verdadeiramente, não consigo conceber como eles vão se arranjar para sobreviver. O homem não se nutre de galhos de árvore. Eles mesmos se perguntam vagamente, mas pouco se assustam. Arrancados de seu contexto, de seu trabalho, de seus deveres, perderam todo o significado. Sua própria identidade desgastou-se. São muito pouco eles mesmos. Existem muito pouco. Inventar-se-ão mais tarde seus sofrimentos, mas sofrem principalmente com as costas mortificadas pelo excesso de pacotes a carregar, pelo excesso de nós que se romperam deixando que as trouxas esvaziem suas tripas, pelo excesso de carros a empurrar e fazer pegar. Nenhuma palavra sobre a derrota. Isso é evidente. Você não sente necessidade de comentar o que constitui sua própria substância. Eles “são” a derrota.
Tenho a súbita visão, aguda, de uma França que perde as entranhas. Seria preciso suturar rápido. Não há um segundo a perder: eles estão condenados…
Começa. Ei-los asfixiados já, como peixes fora d’água.
Não tem leite aqui?
É uma pergunta de morrer de rir!
Meu bebê não tomou nada desde ontem…
Trata-se de um lactente de seis meses que ainda faz muito barulho. Mas esse barulho não vai durar: os peixes, fora d’água… Aqui não tem leite. Aqui, só tem sucata. Aqui, apenas uma enorme sucata inútil que, deteriorando-se a cada quilômetro, perdendo porcas, parafusos, latarias, carrega esse povo, num êxodo prodigiosamente inútil, para o nada.
Espalha-se o boato de que os aviões estão metralhando a estrada a alguns quilômetros ao sul. Fala-se até de bombas. Ouvimos, de fato, explosões surdas. O boato é, sem dúvida, verdadeiro.
Mas a horda não freia. Ela me parece até vivificada. Esse risco total lhe parece mais benfazejo do que o afundamento na sucata.
[…]

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

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