Passava
de vinte e duas horas quando o casal, que vinha do cinema, viu no
meio-fio uma pequena forma escura, sobre a qual se debruçavam três
moças.
A
rua era tranquila, dessas que, mesmo desembocando em outras de agudo
movimento, conservam sua placidez de província, alheias a toda
emoção fora de pauta. Um ponto escuro na calçada, àquela hora de
domingo, e a presença de moças em torno constituíam, pois, algo
extraordinário, cuja importância o casal intuiu devidamente.
A
pequena sombra movia-se. Era gente, mantinha a cabeça baixa, e suas
mãos de menino tenro lidavam com um caixotinho que iam convertendo
em gravetos. Parecia muito preocupado com a tarefa, de sorte que se
manteve alheio à exposição feita por Iolanda, uma das moças,
moradora na vizinhança.
Contava
ela que, passando com duas amigas, também fora atraída pela
coisinha movediça, no recanto menos iluminado da rua.
Aproximando-se, pôs-se a observar o garoto, que tremia de frio mas
não abandonava seu trabalho. Perguntou-lhe por que estava ali, já
tarde, solito, desmanchando tabuinhas. E ele, que não se revelou
amigo de conversa, a custo foi soltando sua explicação. O pai
deixara-o naquele ponto, recomendando-lhe que não saísse do lugar.
Tinha que fazer, e voltaria mais tarde para buscá-lo.
— E
para onde foi seu pai?
— Eu
é que sei?
— A
que hora ficou de voltar?
— Não
disse.
— E
você vai ficar aí jogado até que ele volte?
— Fico
fazendo lenha, uê.
A
moça viu logo que a primeira providência era dar alimento e
agasalho ao guri. Foi à casa, correndo, e trouxe um saco de
biscoitos e um suéter tanto mais admirável quanto estava exatamente
na medida, como tecido na previsão de uma criança de cinco anos,
que fosse encontrada ao abandono, em noite de frio, na calçada.
Ele
se deixou vestir, comeu com gosto e sem pressa. Mas, enquanto comia,
procurava despregar mais uns pedacinhos de madeira.
A
moça pensou em recolhê-lo em casa, à espera dos acontecimentos.
Mas, se o pai viesse e não encontrasse o garoto no meio-fio, como
restituí-lo? Nessa fiúza, estavam já havia uma hora. Por outro
lado, era estranho aquele pai que assim deixava seu filho atirado na
rua, ao relento, prometendo voltar mais tarde. Voltaria? Nunca mais,
talvez.
Restava
o recurso de tomar um carro e ir campear o barracão do menino, mas
ele falava em sítios confusos, parecendo incapaz de localizá-los,
ou pouco disposto a isso. Apelar para a delegacia ou o juízo de
menores, a essa hora da noite, seria inútil. Na pior hipótese, a
moça o guardaria em casa, e amanhã dá-se um jeito.
Examinava-se
o que convinha fazer, em definitivo, quando outro grupo assomou à
esquina, e, vendo o ajuntamento, dele se aproximou. Eram domésticas
e operárias, que vinham rindo, satisfeitas com o domingo bem vivido,
ou por coisa nenhuma. Curvando-se, reconheceram logo um irmão:
— É
Pingo!
Era
Pingo, amigo de todas, domiciliado na Praia do Pinto. Pai? Não tinha
pai, pelo menos que alguma delas soubesse. A mãe era lavadeira, e
Pingo gostava de sair à aventura, percorrendo mundo. Pingo é muito
levado, tem imaginação.
Então
a moça samaritana pediu às vizinhas de Pingo que o levassem. Elas
concordaram, e Pingo não fez oposição. Queria apenas carregar as
tabuinhas, com que faria em casa um grande fogo. Juntaram-se os
fragmentos, e o bando partiu com a mesma algazarra feliz, comboiando
Pingo de suéter novo, com as tabuinhas e os biscoitos remanescentes
na mão.
— Você
vai para o céu, Iolanda! — comentou o casal, a uma voz.
Mas
Iolanda seguia com os olhos o grupo de raparigas, e preocupava-se.
“Essa gente é meio maluca, sei lá se elas levam mesmo o garoto
para casa?”
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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