Exerço
corretamente meu ofício. Não impede que eu seja um tripulante em
derrota. Estou embebido na derrota. Transpira-se a derrota por todo
lado, haja vista minhas mãos.
Os
manetes de potência estão congelados. Estou condenado a manobrar em
potência máxima. E eis que essas duas sucatas me trazem problemas
inextricáveis.
No
avião que estou pilotando, o aumento do passo de hélice é
limitado, baixo demais. Eu não posso pretender, picando em regime
pleno, evitar uma velocidade de aproximadamente oitocentos
quilômetros por hora e o aumento de rotação de meus motores.
Todavia, o aumento de rotação de um motor traz riscos de falha.
A
rigor, me seria possível cortar os contatos. Mas eu me infligiria
assim uma pane definitiva. Essa pane levaria ao fracasso da missão e
à eventual perda do avião. Nem todos os terrenos favorecem a
aterrissagem de um aparelho que toca o solo a cento e oitenta
quilômetros por hora.
É
então essencial que eu destrave os manetes. Em consequência de um
primeiro esforço, vou ao limite do manete esquerdo. Mas o da direita
continua resistindo.
Seria
possível agora efetuar minha descida numa velocidade de voo
tolerável, se eu reduzisse ao mínimo o motor sobre o qual já pude
agir, o esquerdo. Mas se eu reduzir o motor esquerdo, precisarei
compensar a potência assimétrica do motor direito — a qual
tenderá, obviamente, a fazer girar o avião para a esquerda. Terei
de resistir a essa tendência. No entanto, os pedais, dos quais
dependem essas manobras, também estão completamente congelados.
Fico impossibilitado, assim, de compensar. Se eu reduzir o motor
esquerdo, caio em espiral.
O
único recurso será arriscar ultrapassar, durante a descida, o
limite de regime teórico de ruptura. Três mil e quinhentos giros:
risco de falha catastrófica.
Tudo
isso é absurdo. Nada está ajustado. Nosso mundo é feito de
engrenagens que não se ajustam umas às outras. Não são os
materiais que estão em questão, mas o Relojoeiro. Falta o
Relojoeiro.
Depois
de nove meses de guerra, ainda não conseguimos fazer com que as
indústrias adaptassem metralhadoras e comandos ao clima em grande
altitude. E não é com a incúria dos homens que nos deparamos. Os
homens, na maioria, são honestos e conscienciosos. Sua inércia,
quase sempre, é um efeito, e não uma causa, de sua ineficácia.
A
ineficácia pesa sobre nós todos como uma fatalidade. Pesa sobre
soldados da infantaria armados de baionetas diante de tanques. Pesa
sobre os tripulantes que lutam, um contra dez. Pesa até mesmo sobre
aqueles que deveriam ter por missão modificar as metralhadoras e os
comandos.
Vivemos
no ventre cego de uma administração. Uma administração é uma
máquina. Quanto mais uma administração é aperfeiçoada, mais
elimina a arbitrariedade humana. Numa administração perfeita, onde
o homem desempenha seu papel de engrenagem, a preguiça, a
desonestidade, a injustiça não têm mais oportunidade de
alastrar-se.
Mas,
assim como a máquina é construída para administrar uma sucessão
de movimentos previstos de uma só vez, a administração também não
cria mais. Ela gere. Aplica tal sanção para tal falta, tal solução
a tal problema. Uma administração não é concebida para resolver
problemas novos. Se, numa máquina de chapear, introduzirem-se peças
de madeira, não vão sair móveis. Seria preciso, a fim de adaptar a
máquina, que um homem dispusesse do direito de mexer nela. Mas numa
administração, concebida para prevenir os inconvenientes da
arbitrariedade humana, as engrenagens recusam a intervenção do
homem. Recusam o Relojoeiro.
Faço
parte do Grupo 2/33 desde novembro. Meus camaradas, assim que
cheguei, avisaram:
— Você
vai passear na Alemanha sem metralhadoras nem comandos.
Depois,
para me consolar:
— Fique
tranquilo. Você não perde nada. Os caças abatem sempre antes de
serem vistos.
Em
maio, seis meses mais tarde, as metralhadoras e os comandos ainda
congelam.
Penso
numa fórmula tão velha quanto meu país: “Na França, quando tudo
parece perdido, um milagre salva o país”. Entendi por quê.
Aconteceu às vezes de um desastre, tendo destrambelhado a bela
máquina administrativa, e tendo esta se mostrando irreparável,
substituírem-na, por falta de melhor, por simples homens. E os
homens salvaram tudo.
Quando
um torpedo tiver reduzido a cinzas o Ministério da Aeronáutica,
convocarão, com urgência, um cabo qualquer, e lhe dirão:
— Você
está encarregado de descongelar os comandos. Você tem carta branca.
Vire-se. Mas se em quinze dias eles ainda gelarem, você será preso.
Os
comandos, talvez, então, descongelem.
Conheço
uns cem exemplos desse vício. As comissões de requisição de um
departamento do norte, por exemplo, requisitaram novilhas prenhes e
transformaram assim os abatedouros em cemitério de fetos. Nenhuma
engrenagem da máquina, nenhum coronel do serviço de recrutamento
estava qualificado para agir de outro modo senão como engrenagem.
Eles obedeciam todos a uma outra engrenagem, como num relógio.
Qualquer revolta era inútil. É por isso que essa máquina, uma vez
que tenha começado a destrambelhar, foi alegremente empregada em
abater novilhas prenhes. Talvez tenha sido um mal menor. Ela poderia,
se mais gravemente destrambelhada, começar a abater coronéis.
Eu
me sinto desencorajado até o pescoço por essa degradação
universal. Mas como me parece inútil dar um tranco num dos meus
motores, exerço contra o manete esquerdo um novo peso. Em meu
desgosto, exagero o esforço. Depois, abandono. Esse esforço me
custou uma nova pontada no coração. Decididamente, o homem não foi
feito para o culto físico a dez mil metros de altitude. Essa pontada
é uma dor em surdina, uma espécie de consciência local
estranhamente despertada na escuridão dos órgãos.
Os
motores vão estourar se quiserem.
Pouco
me importa. Esforço-me para respirar. Parece-me que não respiraria
mais se me distraísse. Eu me lembro dos foles de outrora, com a
ajuda dos quais a gente reanimava o fogo. Reanimo meu fogo. Eu queria
muito convencê-lo a “pegar”.
O
que estraguei de irreparável? A dez mil metros, um esforço físico
um pouco brusco pode acarretar uma ruptura dos músculos do coração.
É muito frágil um coração. Precisa servir muito tempo. É absurdo
comprometê-lo com trabalhos tão grosseiros. É como se queimássemos
diamantes para cozinhar uma maçã.
Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra
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