Às
vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com
a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser
vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora
mais livres e mais indomáveis. Um animal jamais substitui uma coisa
por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer. E
move-se, essa coisa viva! Move-se independente, por força mesmo
dessa coisa sem nome que é a Vida.
Fiz
notar a uma pessoa que os animais não riem, e ela me falou que
Bergson tem uma anotação a respeito no seu ensaio sobre o riso.
Embora às vezes o cão, tenho certeza, ri, o sorriso se transmite
pelos olhos tornados mais brilhantes, pela boca entreaberta arfando,
enquanto o rabo abana. Mas o gato não ri nunca. No entanto sabe
brincar: tenho longa prática de gatos. Quando eu era pequena tinha
uma gata de espécie vulgar, rajada de vários tons de cinza, sabida
com aquele senso felino, desconfiado e agressivo que os gatos têm.
Minha gata vivia parindo, e cada vez era a mesma tragédia: eu queria
ficar com todos os gatinhos e ter uma verdadeira gataria em casa.
Ocultando de mim, distribuíam os filhotes não sei para quem. Até
que o problema se tornou mais agudo pois eu reclamava demais a
ausência dos gatinhos. E então, um dia, enquanto eu estava na
escola, deram minha gata. Meu choque foi tamanho que adoeci de cama
com febre. Para me consolarem presentearam-me com um gato de pano, o
que era para mim irrisório: como é que aquele objeto morto e mole e
“coisa” poderia jamais substituir a elasticidade de uma gata
viva?
Por
falar em gata viva, um amigo meu não quer mais saber de gatos,
encheu-se para sempre deles depois que teve uma gata em periódica
danação: eram tão fortes os seus instintos, tão imperativos, que
na época de cio, depois dos longos miados plangentes que ecoavam
pelo quarteirão, ficava de repente meio histérica e se jogava de
cima do telhado, machucando-se toda no chão. “Cruz-credo”,
benzeu-se uma empregada a quem contei o fato.
Da
lenta e empoeirada tartaruga carregando seu pétreo casco, não quero
falar. Esse animal que nos vem da era terciária, dinossáurico, não
me interessa: é por demais estúpido, não entra em relação com
ninguém, nem consigo próprio. O ato de amor de duas tartarugas não
deve ter calor nem vida. Sem ser cientista, aventuro-me a
prognosticar que a espécie vai daqui a poucos milênios acabar.
Sobre
galinhas e suas relações com elas próprias, com as pessoas e
sobretudo com sua gravidez de ovo, escrevi a vida toda, e falar sobre
macacos também já falei.
Mulher
feita, tive um cachorro vira-lata que comprei de uma mulher do povo
no meio do burburinho de uma rua de Nápoles porque senti que ele
nascera para ser meu, o que ele também sentiu em alegria enorme,
imediatamente me seguindo já sem saudade da ex-dona, sem sequer
olhar para trás, abanando o rabo e me lambendo. Mas é uma história
comprida, a de minha vida com esse cão que tinha cara de
mulato-malandro brasileiro, apesar de ter nascido e vivido em
Nápoles, e a quem dei o nome rebuscado de Dilermando pelo que nele
havia de pernosticamente simpático e de bacharel do começo do
século. Desse Dilermando eu teria muito a contar. Nossas relações
eram tão estreitas, sua sensibilidade estava de tal modo ligada à
minha que ele pressentia e sentia minhas dificuldades. Quando eu
estava escrevendo à máquina, ele ficava meio deitado ao meu lado,
exatamente como a figura da esfinge, dormitando. Se eu parava de
bater por ter encontrado um obstáculo e ficava muito desanimada, ele
imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça, olhava-me,
com uma das orelhas de pé, esperando. Quando eu resolvia o problema
e continuava a escrever, ele se acomodava de novo na sua sonolência
povoada de que sonhos – porque cachorro sonha, eu vi. Nenhum ser
humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como
fui amada sem restrições por esse cão.
Quando
meus filhos nasceram e cresceram um pouco, demos-lhes um cão enorme
e belo, que pacientemente deixava o menino lhe montar o dorso e que,
sem que ninguém o tivesse incumbido, vigiava por demais a casa e a
rua, acordando de noite todos os vizinhos com seus latidos de
advertência. Dei a meus filhos pintinhos amarelos que andavam rente
atrás de nós, embaralhando-nos os passos, como se fôssemos a
galinha-mãe, aquela coisa mínima carecia de mãe como os humanos.
Dei também dois coelhos, dei patos, dei micos: é que as relações
entre homem e bicho são singulares, não substituíveis por nenhuma
outra. Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu
com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem
se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio.
Mas
às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo
grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não
sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico
ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados
que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são,
que se há de fazer, pobre de nós. Conheci uma mulher que humanizava
os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas próprias
características. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma
ofensa – há de respeitar-lhes a natura – eu é que me animalizo.
Não é difícil, vem simplesmente, é só não lutar contra, é só
entregar-se.
Mas,
indo bem mais fundo, chego muito pensativa à conclusão de que não
existe nada mais difícil que entregar-se totalmente. Essa
dificuldade é uma das dores humanas.
Segurar
um passarinho na concha meio fechada da mão é terrível. Ele
espavorido esbate desordenadamente e velozmente as asas, de repente
se tem na mão semicerrada milhares de asas finas se debatendo
esvoaçantes, e de repente se torna intolerável e abre-se depressa a
mão libertando-o, ou entrega-se-o depressa ao dono para que este lhe
dê a maior liberdade relativa de uma gaiola. Enfim, pássaros eu os
quero nas árvores ou voando, mas longe de minhas mãos. Talvez algum
dia, em contato mais continuado no Largo do Boticário com os
pássaros de Augusto Rodrigues, eu venha a ficar íntima deles, e a
gozar-lhes a levíssima presença. (“Gozar-lhes a levíssima
presença” me dá a sensação de ter escrito frase completa por
dizer exatamente o que é, é engraçada a sensação, não sei se
estou ou não com razão, mas isso já é outro problema.)
Ter
uma coruja nunca me ocorreria. Mas uma amiguinha minha achou por
terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja, todo sozinho, à
míngua de mãe. Levou-o para casa, aconchegou-o, alimentou-o,
dava-lhe murmúrios, terminou descobrindo que ele gostava de carne
crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente
mas demorou a ir em busca do próprio destino, o de reunir-se aos de
sua raça: é que se afeiçoara essa estranha ave à minha amiguinha.
Relutou muito, via-se: afastava-se um pouco e logo voltava. Até que
num arranco, como se estivesse em luta consigo mesmo, libertou-se
voando para as profundezas do mundo.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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