Número
fatídico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim também as
virgens ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de ruiva crina, que
as substituiu no sacrifício de Pelópidas, – uma donosa égua, que
lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe desse nunca uma
palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela
morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, não é
impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número fatídico, tu
foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa de
recusa; disse-me também que eram negócios particulares, e o rosto
sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à dissimulação
humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza profunda que o
minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras
vezes recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e
afetação. Oprimiam-no duas coisas, – a ambição, que um
escrúpulo desazara, e logo depois a dúvida, e talvez o
arrependimento, – mas um arrependimento, que viria outra vez, se se
repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava
da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um
sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno
de alguma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de Dona
Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o
ar.
– Que
tem isso? perguntava-lhe eu.
– Faz
mal, era a sua resposta.
Isto
somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete
selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação,
e ela contentava-se com a certeza do mal.
Já
não acontecia a mesma coisa quando se falava de apontar uma estrela
com o dedo; aí sabia perfeitamente que era caso de criar uma
verruga.
Ou
verruga ou outra coisa, que valia isso, para quem não perde uma
presidência de província? Tolera-se uma superstição gratuita ou
barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o
caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver
sido ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não
acreditou nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a
manejos políticos, ilusão complicada de algumas aparências;
tratou-o mal, comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram
incidentes; enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a
oposição.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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