quinta-feira, 6 de julho de 2023

As rãs | 6




Minha tia ganhou aquele relógio de um piloto da aeronáutica. Um piloto da aeronáutica naquele tempo, nossa! Assim que ouviram a notícia, meus irmãos gritaram vários “uaus” em uníssono e eu dava cambalhotas no chão.
Isso era motivo de alegria não só lá em casa, mas em toda a aldeia. Todo mundo achava que minha tia e o aviador formavam um casal perfeito. O mestre Wang, do refeitório da escola, que tinha participado da Guerra da Coreia, dizia que os aviadores eram feitos de ouro. “E dá para fazer gente com ouro?”, perguntei incrédulo. O mestre Wang, diante dos professores e dos diretores da comuna que ainda almoçavam, respondeu: “Como você é burro, Wan Corre Corre! Eu quis dizer que, para formar um aviador, o país precisa investir uma quantia enorme, algo equivalente a setenta quilos de ouro”. Voltei para casa e contei isso a minha mãe, que disse: “Nossa! E quando ele vier nos visitar, o que temos que oferecer a ele?”.
Circulavam entre nós, crianças daquele tempo, as mais diversas lendas sobre os aviadores. Chen Nariz dizia que a mãe dele tinha visto aviadores soviéticos em Harbin: vestiam jaquetas de camurça, calçavam botas de cano alto também de camurça, tinham dentes de ouro, usavam relógios de ouro, comiam pão preto e linguiça, tomavam cerveja. Xiao Lábio Inferior (que depois mudaria seu nome para Xiao Verão-Primavera),* o filho do zelador do armazém de grãos, dizia que os aviadores chineses comiam ainda melhor que os soviéticos. Ele listou os itens do cardápio dos aviadores chineses — até parecia que cozinhava para eles: de manhã, dois ovos, uma tigela de leite, quatro massas fritas, dois pães de vapor, um pedaço de tofu fermentado; ao meio-dia, uma tigela de guisado de carne, uma corvina amarela, dois pãezinhos grandes; à noite, um frango assado, dois pães de vapor recheados de porco e dois de cordeiro, uma tigela de canja de painço. E, depois de cada refeição, ainda podiam comer frutas à vontade, banana, maçã, pera, uva… se não dessem conta de comer tudo, podiam levar para casa. Era por isso que as jaquetas dos aviadores tinham bolsos bem grandes: foram desenhados para carregar fruta… Essas descrições sobre a vida dos aviadores nos deixavam com água na boca. Todos sonhávamos em ser aviadores um dia, para poder levar aquela vida dos deuses.
A Aeronáutica iria recrutar aviadores no liceu número 1 e meu irmão mais velho se inscreveu, empolgado. Meu avô foi empregado de um fazendeiro, peão de lavoura, depois carregou macas para o Exército de Libertação, participou da Batalha de Menglianggu, foram eles que desceram a montanha levando o corpo de Zhang Lingfu. Minha avó também vinha de uma família pobre do campo e meu tio-avô foi um mártir da revolução. Tudo isso quer dizer que o histórico e as relações sociais da nossa família eram mais que perfeitos. Meu irmão estava entre os melhores atletas do liceu, praticava lançamento de disco. Um dia, depois de comer rabada de cordeiro em casa, ele voltou para a escola cheio de energia, era tanta energia que nem sabia o que fazer com ela, pegou um disco de ferro e arremessou-o com força. O disco passou zunindo por cima do muro e voou até a plantação no exato instante em que um camponês tocava o seu boi para lavrar a terra. O disco acertou em cheio o chifre do boi e partiu-o num corte preciso. Em outras palavras, meu irmão possuía bom histórico familiar, bom desempenho escolar, boa saúde e ainda tinha um futuro tio que era aviador, por isso todo mundo achava que, se a Aeronáutica tivesse de selecionar um único aviador, sem dúvida alguma seria ele. Mas meu irmão não passou na seleção, o motivo foi uma cicatriz na perna, deixada por um furúnculo que teve na infância. Velho Wang, o cozinheiro da escola, explicou: “Com cicatriz não tem jeito mesmo. Quando o piloto chegar a uma grande altitude, a cicatriz vai explodir por causa da alta pressão. E mesmo sem cicatriz, se tiver um par de narinas muito grandes também não dá”.
Resumindo, desde que minha tia e aquele aviador começaram a namorar, ficamos muito sensíveis às coisas da Aeronáutica. Se eu hoje, na casa dos cinquenta anos, ainda me envaideço, ainda gosto de me gabar — sou do tipo de gente que, se ganhasse cem iuanes na loteria, pegaria um alto-falante e sairia espalhando a notícia pela cidade —, imagine então qual não seria minha conduta quando criança, na escola primária, com um futuro tio aviador.
Vinte e cinco quilômetros ao sul de nossa aldeia ficava a base aérea de Jiaozhou, trinta quilômetros a oeste era a base aérea de Gaomi. Os aviões de Jiaozhou eram grandes e pesados, os adultos diziam que eram bombardeiros. Os aviões de Gaomi eram aqueles de asas para trás, prateados, que soltavam fumaça em grandes altitudes, davam piruetas. Meu irmão mais velho dizia que eram os J-5, caças de verdade, cópia dos Mig-17 soviéticos. Na Guerra da Coreia, eram eles que faziam os aviadores americanos se mijarem de medo. Naturalmente achávamos que nosso futuro tio pilotava um caça desses. Naquele tempo, a atmosfera da guerra era muito presente, os aviões decolavam quase todo dia da base de Gaomi em missões de treino. Voavam como uma flecha até em cima de nossa aldeia e encenavam batalhas sobre nossas cabeças. Ora vinham três, ora seis aviões. Ora vinha um na cola do outro, dando piruetas. Ora, num mergulho repentino, parecia que ia bater no álamo da aldeia, mas erguia o nariz abruptamente e subia em disparada, como um gavião pronto para furar o céu. Um dia, ouviu-se um estrondo vindo de cima — minha tia conta que, certa vez, fazia o parto de uma mulher mais velha que estava tendo contrações de tão nervosa quando, de repente, no momento em que preparava o bisturi, ouviram um estouro vindo do lado de fora; com o susto, a parturiente se distraiu, a contração sumiu, e daí foi só ela fazer força que a criança nasceu —, um estrondo tão violento que rasgou os papéis das janelas de todas as casas. Ficamos paralisados de susto e, passado o momento de assombro, o professor nos levou correndo para fora da sala de aula. Erguemos a cabeça para olhar. Vimos, naquele céu de anil, um avião que puxava atrás de sua cauda um objeto cilíndrico e era perseguido por outras aeronaves. Ao redor daquele objeto cilíndrico, primeiro estalavam círculos de fumaça branca, depois chegou aos nossos ouvidos o ribombar de um canhão. Mas o tiro de canhão nem de longe ressoava com a violência daquele estrondo de que falei há pouco, aquele estrondo era o segundo maior barulho que eu já tinha escutado na vida, nem o raio que partiu ao meio o salgueiro grande havia sido tão retumbante. Até parecia que aqueles pilotos não queriam acertar, a rajada de balas apenas envolvia o alvo em sua fumaça branca, sem o atingir, e assim foi até o avião sair do nosso campo de visão. Chen Nariz, apalpando o narigão que lhe rendera o apelido de “russinho”, disse com desdém: “A técnica dos pilotos chineses é muito ruim. Se fossem pilotos soviéticos, tinham derrubado aquele alvo no primeiro tiro!”. Sei que Chen Nariz dizia isso por inveja de mim, ele era nascido e criado na nossa aldeia, nunca tinha visto sequer um cachorro da União Soviética, como podia dizer que um piloto soviético tem melhor técnica do que um chinês?
Naquela época, crianças de uma aldeia remota como a nossa ainda não sabiam da deterioração das relações sino-soviéticas. A observação de Chen Nariz sobre a inferioridade dos nossos aviadores diante dos soviéticos pode ter desagradado a algumas pessoas, e a mim sobretudo, mas ninguém pensou em nada de mais. Alguns anos mais tarde, quando começou a Revolução Cultural, estávamos na quinta série, nosso colega Xiao Lábio Inferior denunciou esse fato passado e provocou sofrimento não só para Chen Nariz, como para os pais dele, que sofreram essas consequências na carne e pagaram com a própria vida. Durante uma busca na casa deles, encontraram um exemplar de História de um homem real, um romance soviético sobre um herói aviador que voltava a pilotar na Força Aérea mesmo depois de perder as duas pernas. Em tempos normais, esta seria uma genuína obra de encorajamento revolucionário, mas se tornou prova de que Ai Lian fora amante de um piloto revisionista soviético e que Chen Nariz era o produto bastardo desse romance.
Os caças J-5 da base aérea de Gaomi treinavam durante o dia, mas os aviões da base de Jiaozhou não queriam ficar para trás — eles voavam à noite. Quase toda noite por volta das nove — ou seja, assim que terminava a transmissão dos alto-falantes — os holofotes da base aérea se acendiam de repente. Quando os grossos feixes de luz chegavam a iluminar o céu sobre nossa aldeia, éramos tomados de um assombro sem igual, mesmo que já soubéssemos do que se tratava. Eu sempre dizia alguma bobagem fora de hora: “Ah se eu tivesse uma lanterna dessas…”. “Estúpido!”, ralhava meu segundo irmão toda vez que me ouvia dizer alguma coisa assim, enquanto me enchia de cascudos. Claro que também por causa do nosso futuro tio, meu irmão se tornara praticamente um especialista em aeronáutica. Ele sabia de cor os nomes dos heróis da Força Aérea Voluntária na Guerra da Coreia e sabia ainda narrar as façanhas de cada um. Também foi ele que me contou certa vez, quando eu me preparava para catar piolhos da sua cabeça, que o ruído que rasgou os papéis das janelas se chamava “estrondo sônico” e era produzido por um avião supersônico ao quebrar a barreira do som. “E o que quer dizer supersônico?” “Quer dizer mais rápido que o som! Seu burro!” Quando os aviões da base aérea de Jiaozhou saíam para seus exercícios, não conseguíamos ver nada além dos holofotes. Alguns diziam que não eram exercícios, que os holofotes serviam como luzes de orientação para os aviões fora de rota. Aqueles grossos feixes de luz varriam o céu para lá e para cá, às vezes se cruzavam, às vezes iam paralelos, às vezes um pássaro aparecia dentro da luz, se assustava e voava desorientado, como uma mosca presa dentro da garrafa. Sempre alguns minutos depois que os holofotes eram acesos, soava no céu o ronco dos aviões. Às vezes, víamos aparecer no feixe de luz um vulto negro, com a silhueta vagamente delineada pelas lâmpadas no nariz, na cauda e nas duas asas. Ele parecia deslizar seguindo o feixe de luz de volta ao ninho. Isso porque, assim como as galinhas, os aviões também têm ninho.

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* Na China, algumas pessoas mudam a grafia do nome para um ideograma de pronúncia parecida e sentido mais auspicioso ou elegante.

Mo Yan, in As rãs

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